SIGNIFICADO DA GRANDE QUARESMA - PARTE IV

                                 Extraído do Livro “The Lenten Triodion”, 
       pelo arquimandrita Kallistos WARE e Madre Mary, 
    Faber and Faber, Londres, 1978 


Os conteúdos do Triódio

No livro da Grande Quaresma, o Triódio de Quaresma, dois elementos constitutivos podem ser distintos: o primeiro, o ciclo do Saltério e de outras leituras das Escrituras; o segundo, o ciclo da hinografia litúrgica – dos cânones, estikera, catismas poéticos e etc.

O Saltério e as leituras das Escrituras. São de inestimável importância, pois a Quaresma é o retorno anual às nossas raízes bíblicas. É mais especificamente um retorno às nossas raízes no Antigo Testamento, pois durante a Grande Quaresma num grau muito maior do que em qualquer outra parte do ano as leituras das Escrituras são tiradas do Antigo Testamento mais do que do Novo Testamento.

Esta ênfase no Antigo Testamento é evidente, em primeiro lugar, no lugar proeminente ocupado pelo Saltério durante a Grande Quaresma. Ao invés de ser lido apenas uma vez, como em todas as outras semanas do ano, durante a Grande Quaresma o Saltério é lido todo duas vezes a cada semana. Nossas aspirações de Quaresma estão concentradas nas palavras dos Salmos que o próprio Nosso Senhor sabia de cor desde criança e usava nas suas orações da manhã e da noite. A centralidade do Saltério é particularmente evidente em Matinas dos dias de semana, quando quase metade do ofício é tomado dos Salmos e o cânon é muito mais curto que em outros períodos (em geral apenas três odes1). Durante o cânon em si, uma particular proeminência é, de igual modo, dada às Escrituras do Antigo Testamento, pois as odes (cânticos) do Antigo Testamento são cantadas totalmente nos dias de semana da Grande Quaresma, ao invés de serem grandemente abreviadas ou omitidas de todo, como em outros períodos do ano. Isto serve como uma reminiscência da forma original do cânon, que originalmente consistia dos cânticos bíblicos com não mais que um pequeno refrão entre seus versículos.

O aumento do uso dos textos do Antigo Testamento é evidente, também, em outros ofícios da Grande Quaresma além das Matinas. Nos dias de semana ocorrem leituras adicionais do Saltério nas Horas Canônicas (prima, tércia, sexta e nona). No lugar da Epístola e Evangelho indicados para a Liturgia a cada dia durante o resto do ano, ocorrem nos dias de semana da Grande Quaresma três leituras do Antigo Testamento, um lida na Sexta Hora Canônica e duas lidas em Vésperas. Mas aos sábados e domingos, quando a Eucaristia é celebrada totalmente, a Epístola e o Evangelho são indicados da maneira usual. As leituras de Epístola na Grande Quaresma são normalmente tiradas do livro de Hebreus, e as leituras do Evangelho de Marcos; em ambos os casos elas estão ordenadas numa seqüência cuidadosamente planejada.

O esquema das leituras do Antigo Testamento no Triódio foi, provavelmente, elaborado entre o quinto e sexto século. As três leituras diárias são tomadas de três principais categorias da literatura do Antigo Testamento – dos livros históricos, dos profetas e da literatura sapiencial – de acordo com o seguinte padrão:

1. Livros históricos (Pentateuco) para a primeira leitura de Vésperas:

  • Gênesis (nas seis semanas da Quaresma)

  • Êxodo (na Semana Santa)

        
2. Os profetas na Sexta Hora Canônica:
  • Isaías (nas seis semanas da Quaresma)

  • Ezequiel (na Semana Santa)


3. Literatura sapiencial para a segunda leitura nas Vésperas:
  • Provérbios (nas seis semanas da Quaresma)

  • Jó (na Semana Santa)

Tanto representando as várias categorias de literatura do Antigo Testamento, estes livros foram escolhidos devido à sua adequação ao espírito de Quaresma:
  1. O Gênesis descreve a queda do homem e sua expulsão do Paraíso, que é um tema dominante ao longo de todo o Triódio. Os últimos capítulos do Gênesis contam a história de José, que em seus sofrimentos, sendo inocente, serve como um “protótipo” de Cristo.

  2. Nas leituras do Êxodo, Moisés prefigura a Cristo, a velha Páscoa (Passagem) antecipa a Nova, a passagem pelo Mar Vermelho prefira a morte redentora e a ressurreição de Cristo.

  3. O Livro de Isaías começa com um apelo ao arrependimento e ao jejum.

  4. As leituras de Ezequiel falam da Glória de Deus – a Glória que é também manifestada pela Cruz e a Ressurreição: “...Agora o Filho do Homem foi glorificado e Deus foi glorificado nele” (Jo 13, 31).

  5. A instrução ética nos Provérbios nos relembra que a Quaresma é um tempo para um esforço moral: arrepender-se não é meramente experimentar certas emoções, mas ao nível de conduta prática, alterar nosso estilo de vida com a ajuda da graça de Deus. Se nós achamos a leitura dos Provérbios chata e procuramos por algo mais “dramático” e “excitante”, isto mostra que queremos fugir daquilo que nos foi ensinado a seguir.

  6. Os sofrimentos pacientes de Jó e seu desfecho final apontam para a Paixão e Ressurreição de Cristo.

Então, torna-se evidente que as leituras do Antigo Testamento não foram escolhidas ao acaso, mas cada uma delas possui seu lugar na unidade interligada do Triódio.

A Hinografia litúrgica. O material não-Bíblico do Triódion foi composto ao longo de um período de aproximadamente 1000 anos, do século VI ao século XV. Três principais fases podem ser distintas:

  1. O início (século VI ao século VIII). Provavelmente os mais antigos elementos existentes são os textos do ciclo diário dos troparia da Profecia, ditos antes da leitura da Profecia na Sexta Hora Canônica. São muito simples na forma, sendo um pouco mais que uma paráfrase rítmica de algum texto da Bíblia. Quase tão antigo é o Hino Acatiste, provavelmente trabalho de São Romano, o Mélodo (†c. 560)2. Um pouco mais tardio, em data, encontra-se o mais antigo dos Cânones, o Grande Cânon de Santo André de Creta (c. 660-740), aparentemente composto no fim de sua vida – ele refere-se muitas vezes à sua idade avançada e pretende ser, por seu autor, uma obra mais de expressão de devoção pessoal do que para uso litúrgico público. No fim do século VIII André, conhecido como “Piros” ou “o Cego”, monge da Lavra de São Sawa compôs um ciclo de idiomela, dois para cada dia de semana da Quaresma, um cantado na apóstica de Matinas e outro na das Vésperas; o ciclo foi completado e expandido pelo contemporâneo e companheiro de André, também monge, Estevão, o Sabaíta (725-807), o sobrinho de São João Damasceno. Estes idiomela, que são indicados para serem cantados duas vezes, são excepcionalmente ricos em teor doutrinal, resumo de toda a teologia da Grande Quaresma e devem ser estudados com particular atenção.

Entre outros autores, que datam do século VI ao século VIII e representados no Triódio estão S. Sofrônio, Patriarca de Jerusalém (†638), S. João Damasceno (c. 680-749), e S. Cosme de Maiuma (c. 685-c. 750). Quase todos os hinógrafos pertencentes a esta primeira fase estão associados com a Síria ou Palestina, e a maioria deles está relacionada com a Lavra de São Sawa fora de Jerusalém.

(2) O período formativo (século IX). Durante este século, o centro líder de atividade desloca-se da Palestina para Constantinopla, dentro de Constantinopla no Mosteiro de Studios, então, no auge de sua influência. Foram os monges estuditas do século IX que deram não apenas ao Triódio de Quaresma sua estrutura presente, como também, compuseram a maior parte de seu conteúdo. Este livro (Triódion de Quaresma), assim como o Pentecostário é substancialmente o produto editorial Estudita. Eles trazem a marca em particular de dois irmãos S. Teodoro, o Estudita (759-826) e S. José, o Estudita, Arcebispo de Tessalônica (762-832). São Teodoro compôs o segundo cânon para os dias de semana na Quaresma, e seu irmão José o primeiro3. Estes cânones variam no conteúdo de acordo com o dia da semana: Às segundas e terças são dedicados ao arrependimento; às quartas e sextas, à Cruz; às quintas aos apóstolos; aos sábados aos mártires e à morte.

Outros escritores do século IX cujos trabalhos são encontrados no Triódion são S. Teófano Graptos (778-845), S. José, o Hinógráfo (c. 816-c. 886), o Imperador Leão VI, o Sábio (reinou de 886-912) e a poetisa Cássia ou Cassiani que desprezou as chances de se casar com o Imperador Teófilo (829-842) pelo atrevimento de sua resposta, e posteriormente tornou-se monja4. Ela é a autora de um célebre hino das Matinas de Quarta-feira Santa, “A mulher que caiu em muitos pecados....”.

(3) Adições suplementares (século X ao século XV). Apesar da estrutura básica do Triódio estar completa no século IX, muitas adições suplementares foram feitas durante os cinco séculos subseqüentes, ainda que sem alterar o padrão geral articulado pelos redatores do Mosteiro de Studios. Manuscritos de Triódia (plural de Triódio) do século XI mostram que havia naquela época uma ampla variedade de usos locais, mas do século XII em diante passa a existir uma crescente uniformidade. Dentre os mais notáveis escritores desta terceira fase está Simeão, o Logothete, conhecido como “o Tradutor” (século X), autor da Lamentação da Mãe de Deus usada em Completas na Sexta-feira Santa; João Marvopous, Metropolita de Euchaita (século XI), autor de dois cânones para São Teodoro para o sábado da primeira semana; e o Patriarca Filoteos de Constantinopla (século XIV), autor do ofício em honra de São Gregório Palamas no segundo domingo.

Surpreendentemente, alguns dos mais amados elementos do Triódio são, também, os mais recentes em data. Os três tropários cantados nas Matinas de domingo após a leitura do Evangelho, “Abra-me, ó Doador da Vida, as portas do arrependimento...”, “Guia-me no caminho da salvação...”, “Enquanto eu meditava em minha infelicidade...”, não aparecem nesta posição antes do século XIV, apesar dos textos em si mesmo serem, provavelmente, mais antigos. As Laudes cantadas nas Matinas no Sábado Santo são encontradas pela primeira vez em manuscritos dos séculos XIV ou XV. Os manuscritos de Triodia contêm mais material adicional - cânones, idiomela e estikera – não incluídos no Triódio impresso que agora está em uso; muitos destes textos não publicados são de elevado padrão artístico e espiritual. Assim, o Triódio hoje existente, apesar de rico e complexo, não representa mais que uma seleção de um todo maior. Em sua origem, um livro de ofício monástico, refletindo mais particularmente a observância da fraternidade Estudita, o Triódio veio, com o tempo, a ser adotado também pelas paróquias. Este processo pelo qual o rito de “catedral” foi gradualmente substituído pelo rito “monástico” já havia se iniciado no século XII e estava mais ou menos completo por volta do século XIV. Quaisquer que fossem os méritos do rito de “catedral” – e existem pessoas que são favoráveis ao seu renascimento em uma forma modificada – não havia nada de absurdo ou espiritualmente inadequado na adoção do Triódio monástico pelas paróquias. Pois os textos do Triódio são endereçados não apenas a monges, mas a todo cristão; o caminho de contrição e jejum ao longo do qual ele nos guia possui validade universal.

1 N.T. do tradutor.

2 Antigas fontes discordam quanto à data e autoria do Hino Acatiste. A questão tem sido muito debatida nos últimos 80 anos; muitos eruditos apoiam uma data no começo do século VI e atribuem a autoria a S. Romano como provável, embora não indubitavelmente provado. Para uma ampla discussão do problema, com bibliografia, ver K. Mitsakis, Vyzantini Ymnographia, vol. 1 (Thessalonica, 1971), p. 483-509. Em inglês ver E. Wellesz, The Akathistos Hymn (Copenhagen, 1957) e A History of Bizantine Music and Hymnography (2ª ed., Oxford, 1961), p. 191-197. O Hino tem sido atribuído, também, a Sérgio, Patriarca de Constantinopla (610-638), que na verdade pode ser o autor do kontakion: “A ti os acentos da vitória...”, mas parece ser muito tardio para que seja o autor do próprio Hino. Outros a quem a autoria do Hino tem sido atribuída incluem Jorge de Pisídia (primeira metade do século VI), S. Germano, Patriarca de Constantinopla (†740), Jorge de Nicomédia (segunda metade do século IX) e S. Fócio, Patriarca de Constantinopla (†890); mas há pouco a favorecer qualquer uma destas sugestões.

3 Possivelmente o autor não é José, o Estudita, mas José, o Hinógrafo. Ver E. I. Tomadakis, Iosiph o Ymnographos (Athens, 1971), p. 200-201.

4 Ver Simeon Magister, Annals (P.G. cix, 685C); George, o Monge, Chronicle, iv, 264, (P.G. cx, 1008B)

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