CRISTO, VERDADEIRO E PERFEITO HOMEM
BLOOM, Metropolita
Anthony de Sourozh
tradução de monja Rebeca (Pereira)
A Encarnação, o fato
de Deus tornar-Se homem, é uma revelação de ambos, de Deus e do homem. Para
entender, portanto, o quão plenamente o homem é revelado através da Encarnação,
é preciso redescobrir o quão plenamente Deus é revelado. Os deuses da
antiguidade, do discurso filosófico, eram sempre imagens da grandeza do homem
ou da grandeza que o homem podia perceber ou imaginar em um ser super-humano. O
que nenhuma religião, nenhuma filosofia, nunca ousou apresentar foi um deus que
torna-Se homem, sofre e esvazia-Se de Seu esplendor a fim de tornar-Se
plenamente e completamente acessível a nós. Na Encarnação nós descobrimos que
nosso Deus, o Único Santo de Israel, o Criador do mundo, a Beleza que
ultrapassa toda beleza, a Verdade é a única Realidade do mundo; que este Deus
escolhe, em um ato de amor, a fim de identificar-Se com o destino da
humanidade, a fim de trazer para Si a total e derradeira responsabilidade pelo
Seu ato criativo; que toda a beleza do mundo é chamada a se expor, enquanto ao
mesmo tempo Ele dá ao mundo a liberdade que destrói e distorce esta beleza.
Este Deus escolhe tornar-Se frágil, vulnerável, indefeso e desprezível aos
olhos de todos aqueles que acreditam somente na força, no poder e em vitória
visível e temporária – um devoto, um homem crente não poderia ter inventado
semelhante Deus. Conceber um deus nestes termos seria uma blasfêmia. E agora,
Deus Se revela como tal: vulnerável, indefeso, frágil e desprezível. Esta é a
loucura da Cruz da qual São Paulo fala. E a loucura não é somente nossa; é a
loucura de Deus da mesma forma. Alguns místicos falam do amor divino como sendo
loucura, porque para oferecer amor a criaturas como nós, que podemos ser
incapazes de corresponder, que podemos rejeitá-lo e esmagá-lo sob nossos pés
como o porco esmaga a pérola de elevado preço na parábola, é loucura. Mas,
então, São Paulo diz, a loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria do homem.
Se nós falamos da
revelação do homem em todo o seu esplendor através de Cristo, nós devemos
perceber que isto pode somente ser efetivado por um Deus que aceita tornar-Se
indefeso. Angelus Silesius, o místico alemão, diz: “Eu sou tão grande quanto Deus; Ele é tão pequeno quanto eu”. Nós
precisamos pensar no que isso significa. Por outro lado, como eu disse, a
Encarnação é também uma revelação da grandeza do homem. Ela é a revelação do
fato de que o homem foi criado por Deus de tal forma que, não somente em
espírito, mas também em alma e em corpo, ele pode ser não somente portador do
espírito, mas portador de Deus. Ele pode não somente ver Deus face a face, ser
um amigo de Deus, estar na mais profunda relação possível de obediência e
comunhão, mas pode também, nas ousadas e inspiradas palavras de São Pedro,
tornar-se um participante da natureza divina, pode tornar-se, mesmo enquanto
permanece homem, o que Deus é em Sua natureza, exatamente como Deus, sendo deus
por natureza, torna-se homem por participação. A união é igualmente completa –
e gloriosa – em ambos os casos. A Encarnação não é somente a revelação do homem
em sua grandeza, em seu potencial divino, é também uma revelação em novos
termos do potencial do mundo físico criado. Se a divindade de Cristo podia
unir-se ao corpo na Encarnação, isto significa que o corpo material da
Encarnação era capaz de tal unidade com o próprio Deus – não com o Divino como
uma noção, não com o Divino como simplesmente uma graça de Deus derramada sobre
nós – que, com Deus, ele pode ser verdadeiramente divinizado. Se isso é verdade
para o corpo de Cristo, então é verdade para toda a realidade material deste
mundo. Significa que as palavras de São Paulo, quando diz que chegará o dia
quando Deus será “tudo em todos”,
deve ser tomada em seu sentido mais realista. Deus, a divina Presença,
penetrará todas as coisas criadas – toda humanidade e todo o mundo criado. O
mundo tornar-se-á então a gloriosa vestimenta de Deus, o corpo de Deus, a
Encarnação de um Deus que estará sempre além do seu mundo, mas que tornar-Se-á
imanente a todas as coisas neste mundo, a tudo que Ele criou. Nos sacramente
nós já temos uma visão deste verdadeiro ato. Quando nós dizemos que este pão e
este vinho tornam-se o Corpo e Sangue de Cristo nós vemos, em termos
escatológicos, que pão e vinho, e toda a matéria representada por eles, são
chamadas a ser: o Corpo de Cristo e o Sangue de Cristo. Portanto, a Encarnação
nos dá não somente uma imagem histórica de uma relação entre Deus, o Salvador,
e nós. Ela nos dá um vasto panorama, uma visão de que o mundo todo é chamado a
estar em Deus: “Eu neles e Tu em mim. Eu
em Ti, Pai, e eles em mim”, São Paulo diz, nossa vida já está “escondida com Cristo em Deus”. Quando
nós pensamos na Encarnação e em Cristo-Homem, nós precisamos ter cuidado em não
cair na heresia de separar a divindade da humanidade, olhando para elas
separadamente apesar de vê-las em sua unidade. Esta unidade foi lindamente
expressa por São Máximo, o Confessor, o qual afirma que a união entre a
humanidade e a divindade de Cristo é como a união do fogo e do ferro que
aparece quando você mergulha uma espada de ferro dentro da fornalha até ela
arder em brasa. “Fogo e ferro”, ele
diz, “estão unidos agora em um
indistinguível modo. Você não pode separar de forma alguma um do outro”.
Este é o dogma de Calcedônia. Assim é a sua unidade, para usar as próprias
palavras de São Máximo, “ele agora pode
queimar com ferro e cortar com fogo”. A imagem do fogo e um objeto criado
nos leva direto à imagem bíblica de Deus como fogo, direto ao Deus que Se
revela na sarça ardente. Padre Lev Gillet escreve que o fogo de Deus queima
somente o que é mal e não se alimenta do que põe chama. Ele o transforma em
arbusto flamejante sem reduzi-lo a cinzas. É o que acontece na Encarnação.
Deus, o Fogo Divino, vem sobre um ser humano, e é esta entidade humana que é
feita dentro de uma plenitude do Ser, sem nenhuma mudança em sua natureza. Isso
ocorre do mesmo modo em que o pão torna-se o Corpo de Cristo e o vinho torna-se
o Sangue de Cristo na Sagrada Liturgia. Eles ainda permanecem eles mesmos,
porque Deus não aniquila sua criatura no processo de torná-la em alguma outra
coisa, alguma coisa essencialmente diferente. Incidentalmente, parte da
tentação que o demônio ofereceu a Cristo foi apenas esta, “Você criou pedras”,
ele disse, “agora desfaça seu ato de criação e transforme-as em pão. Você criou
pão e vinho, desfaça seu ato de criação, aniquile sua verdadeira realidade e
transforme-os em algo diferente”. Não, Deus faz coisas diferentes para
elevá-las a um estado escatológico. Na primeira oração do Cânon da Liturgia nós
dizemos: “Tu não cessaste de fazer tudo
para nos elevares ao Céu, concedendo-nos a graça do Teu Reino futuro”.
Logicamente é um absurdo. Como nós podemos participar agora em algo que está
além de nós? E ainda é realidade escatológica: as coisas finais e decisivas já
estão aqui, porque Deus veio ao mundo e porque o mundo não é mais um mundo que
permanece face a face com Deus. É um mundo no qual Deus é imanente, mesmo
enquanto Ele permanece o Deus transcendente. E este é o Deus em quem nós
acreditamos. No fim do nono capítulo do Livro de Jó, no versículo 33, Jó
descreve seu desesperado conflito com Deus e diz: “Não há entre nós árbitro que ponha a mão sobre nós ambos”. Não
havia certamente alguém que pudesse intervir entre as duas partes conflitantes,
entre Deus Onipotente e o homem em sua fragilidade – e simultaneamente em sua
pureza de intenções e, consequentemente, em sua retidão. Não havia alguém que
pudesse ser igual a ambos, que pudesse intervir no conflito, colocar sua mão no
ombro do Senhor e no ombro do homem, não para dividi-los, mas para juntar o que
havia sido separado. Isso é atingido na Encarnação. Na Encarnação este conflito
entre Deus e o homem torna-se um confronto dentro de uma Pessoa, uma Pessoa que
é, simultaneamente e igualmente, ambos, homem e Deus. Nesta Pessoa há uma
unidade que é Deus e homem, a hypostasis de Cristo, na qual tudo que é
humano é confrontado com tudo que é de Deus para que o conflito seja resolvido
de dentro pela tragédia interna e vitória da unidade entre estes dois. De
dentro da perspectiva da Encarnação pode-se ver o que a intercessão do Verbo
realmente significa. A intercessão do Verbo significa “intervenção” que conduz
ao coração do conflito. É o que Cristo faz. Mas, ao mesmo tempo, Ele une, ele
traz todo o conflito para dentro Dele mesmo e o resolve lá. E é porque, tendo
resolvido dentro d’Ele mesmo, Ele pode resolvê-lo para o mundo todo, para o
homem, para a história e para o cosmos. Este modo de resolver o conflito
envolve as duas naturezas e as duas vontades. Não haveria solução para o
conflito se Cristo não fosse verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem em
todos os aspectos, exceto no pecado. Mas este conflito também não poderia ser
resolvido se Cristo – a hypostasis – não possuísse duas vontades. Se a
vontade de Deus se sobrepusesse à vontade do homem, a harmonia não seria
restaurada. Se a vontade do homem permanecesse para sempre independente da
vontade de Deus e num estado de confrontação com ela, não haveria novamente harmonia.
É somente porque há em Cristo tudo que é humano, inclusive a liberdade do
homem, e tudo que é Deus, inclusive a liberdade de Deus, a grandeza, a
humildade, a entrega e kenosis de Deus, que a vitória pode ser
alcançada. Duas naturezas são unidas e um novo Adão nasce. Por que?
Quando Adão foi
criado, ele não foi criado como um indivíduo, como parte de uma já existente
multiplicidade de seres humanos. Ele tinha nele mesmo a total humanidade
naquele momento. Porém naquele momento ele não era um indivíduo, mas uma
pessoa. Não havia nenhuma divisão, nenhuma fragmentação, nenhum pecado, nenhum
mal nele. Ele era completamente pleno, com a totalidade da inocência e da
santidade. Ele conhecia Deus e era conhecido por Deus, em termos de comunhão,
de conhecimento “face a face”, de visão e contemplação.
Na Encarnação, Cristo
não é simplesmente um indivíduo entre outros indivíduos. Na linguagem de São
João Evangelista, Ele não nasceu da vontade do homem, nem da vontade da carne,
mas da vontade de Deus. Ele é uma nova criação, Sua humanidade é parte do mundo
criado. Ele é novo porque embora Ele tenha descendência, Sua descendência não
representa a totalidade de sua linhagem em direção à existência. Ele possui uma
descendência que foi dada a Ele. Nós vemos isto na genealogia de Cristo, que se
move passo a passo através dos séculos da história dos Hebreus. Mas Deus é seu
Pai. Cristo tem uma descendência dupla que de alguma forma se transmite a nós.
Há uma abertura para a eternidade, a absoluta e a divina. Ele é único porque
Ele é totalmente homem, possuidor da carne humana que Ele recebeu da Virgem.
Mas ele é também Filho de Deus, como o Evangelho de São Lucas nos ensina: “O Espírito Santo te cobrirá com a sua
sombra, pelo que também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado e será –
em realidade – o Filho de Deus”. É neste contexto que nós devemos pensar
com profunda reverência na Mãe de Deus e sua virgindade, sua ascensão à
santidade e a Encarnação. Na Encarnação ela torna-se a noiva solteira, a noiva
que não conheceu homem, a noiva do Altíssimo, a noiva de Deus. Ela representa
em sua própria pessoa virginal – que significa que ela está totalmente aberta a
Deus, totalmente submissa e entregue – toda a criação em todo seu esforço,
anseio e sofrimento por unidade. Este esforço é escasso em realização para
todos nós, mas é realizado nela. Como a noiva do Cordeiro ela é Criação; neste
sentido, ela é casada com o Deus vivo. Não pode haver nenhum pensamento de um
casamento humano, porque isto seria um adultério místico. Ela é a esposa, a
noiva de Deus e ela não pode ser a esposa, a noiva, de nenhum homem.
Tornando-se o lugar de morada do Deus encarnado, é impensável que ela pudesse
posteriormente tornar à vida comum. É mais impensável ainda que José, sabendo
da Encarnação, pudesse ser capaz de tratá-la de outra forma que não o de vaso
sagrado da Encarnação, um objeto de reverência e veneração.
Na Encarnação e na
Natividade nós podemos ver que Deus, em Cristo, oferta-Se a Si mesmo à
humanidade no total desamparo de uma criança. Ele Se dá. Nós podemos fazer com
Ele o que nós escolhermos. Estas palavras são usadas no Evangelho em referência
a São João Batista, mas elas também se aplicam aqui. Nós vemos o que o Amor
divino, e, finalmente, o que o perfeito amor humano pode ser: uma total doação
de si, indefeso, totalmente vulnerável, e trazer à tona uma resposta. Isto é
essencial, porque nós seremos medidos em nossa dignidade humana, em nossa
habilidade humana em entender Deus e comungar com Ele da forma na qual nós
podemos nos relacionar com um Deus vulnerável e indefeso. Cristo diz na Última
Ceia: “Ninguém tira a vida de mim. Eu a
dou livremente”. O Livro da Revelação fala do Cordeiro de Deus sacrificado
antes de todos os séculos. O sacrifício do Filho é intrínseco ao mistério do
Amor divino como dirigido ao mundo criado. O Filho de Deus é o protótipo do
homem. Nós fomos criados à Sua imagem. Nossa presença ideal já está lá na
Trindade. Esta imagem é projetada para a história e acha seu lugar na história,
quando o tempo está pronto. As palavras de Cristo na Última Ceia são
importantes porque elas indicam que não é um ato unilateral de Deus, mas uma
cooperação de Deus e do homem na salvação do mundo. Há uma passagem nos
trabalhos de Charles Williams no qual, falando da Encanação, ele diz que ela
acontece quando uma virgem de Israel se mostra capaz de pronunciar o Santo Nome
com toda sua força, com todo seu coração, com toda a sua vontade e com toda sua
carne. Então o Verbo se fez carne. Esta é cooperação entre o homem e mundo criado,
por um lado, e Deus por outro lado. Na criança de Belém, nós vemos Deus
entregando seu Filho em nossas mãos. Este é o momento quando o Cordeiro de Deus
é verdadeiramente um indefeso e vulnerável cordeiro. Este é o momento em que
nós podemos ver Deus sacrificando seu Filho para a Salvação do mundo. Ele O
manda em direção à morte. Nós temos uma imagem disto em Abraão e Isaque. Mas no
caso de Isaque, Deus providencia um carneiro. No caso do seu Filho unigênito,
ele não providencia um substituto. O Filho tem que morrer pela salvação do
mundo. Alguém poderia dizer que há uma grande quantidade de referências à
imagem do sacrifício e à vítima inocente no Velho Testamento. É sempre a sem
culpa, a mais perfeita vítima que deve ser oferecida em sacrifício, a fim de
preparar Israel para o derradeiro sacrifício do Filho de Deus. Mas isto deve
também fazer-nos entender que o mal, o ódio, todas as paixões humanas, sempre
resultam em morte e sofrimento do inocente. Uma pessoa bebe e dirige, enquanto
outra é morta na estrada. Há também um corolário a isto no momento quando
Cristo é trazido ao templo por sua mãe e José. Nós devemos entender que este é
o próximo passo no cumprimento da Lei. Em Êxodo, após a saída do Egito, o
Senhor diz a Moisés que o povo de Israel deveria trazer o primogênito de cada
casamento como uma oferta a Ele. Isto implica em uma oferta sangrenta em
resgate pelo primogênito do Egito que teve que morrer para que Israel pudesse
ser libertado. Como na história de Abraão e Isaque, porém, o Senhor permite um
substituto. Mas quando o Senhor Jesus Cristo é trazido pela Sua Mãe ao templo,
Deus toma posse Dele, espera até o tempo certo e O aceita como uma oferta
sangrenta, como o derradeiro sacrifício. Isto é o que nós devemos lembrar
quando trazemos crianças em ação de graças após o parto. Isto é o que significa
“trazer a criança à Igreja após o parto”;
toda criança é trazida para o templo no mesmo termo verdadeiro como Cristo:
para tornar-se posse de Deus. Por nossa vontade de ser Dele, a criança é
entregue para a vida e para a morte.
Agora eu vou
voltar-me para o significado, neste contexto, do batismo de Cristo. O Antigo
Bispo George falou da “gradual perfeição”
da natureza humana de Cristo. Há uma certa ambiguidade nesta expressão. O que
eu acredito que ele quis dizer não foi que havia originalmente estágios de
imperfeição que foram corrigidos posteriormente, mas que, pelo fato de que
Cristo nasceu verdadeiramente homem, em todo estágio de Seu desenvolvimento na
infância e na juventude, Ele era adequado àquela idade e àquele estágio. E
sempre que uma nova habilidade – seja de inteligência, de sensibilidade, ou de
vontade – desabrochava Nele no processo de maturação do nível humano, esta
habilidade era absorvida pela Divindade e integrada à Sua total perfeição, a
divina-humana harmonia que é o encarnado Filho de Deus. A cada passo Ele era
perfeito na total e perfeita união de Sua humanidade e Sua Divindade. Nunca
houve um momento em que Ele foi menos perfeito, ou imperfeito, e então cresceu
em perfeição, posto que alguém pode dizer de um movimento no qual Sua
humanidade penetrava sempre mais plenamente a vocação que o Deus Nele o chamava
a cumprir. Nós encontramos isto no Batismo de Cristo. No momento que ele vem ao
Jordão, um homem de trinta anos – e todos os Padres nos ensinam que Ele tinha
atingido Sua total e perfeita maturidade humana. Naquele momento, Ele, o homem,
Jesus Cristo (cf. São Paulo), com sua livre vontade, na totalidade de Sua
humanidade, escolhe cumprir Sua vocação. Aqui novamente há duas vontades, mas
naquele momento as duas vontades foram consumadas em uma harmonia, que é a
Vontade Divina, à qual a vontade humana não irá somente aquiescer, mas com a
qual a vontade humana se identificará gloriosamente, alegremente e
sacrificialmente. No momento em que Cristo vem às margens do Jordão, São João
Batista não sabia porque ele deveria batizá-Lo. Ele viu Nele o Cordeiro de
Deus, o Único que era puro, santo e sem mancha. Que significado poderia ter
aquele batismo? Porque todo tipo de pecador tinha vindo às margens do Jordão,
tinha imergido nas suas águas, tinha se limpado do mal e do pecado, e por isso
aquelas águas tinham se tornado pesadas com o pecado do homem, com a
mortalidade do pecado, então quando o Senhor Jesus Cristo foi mergulhado dentro
delas, como a lã é mergulhada na tinta, Ele saiu com o pecado do homem
estampado Nele. No mito de Hércules e seu combate com o centauro, o centauro é
um ser que é meio-humano e meio-cavalo, isto é, bestialidade unida à
humanidade. Em certo sentido, esta é nossa condição. Nós somos todos centauros.
Nós temos todos nossa gloriosa humanidade em nós e nós permitimos que ela se
corrompa. Em seu combate com esse ser monstruoso – e, em certo sentido, nós
somos todos monstruosos, em contraste com a insuperável beleza de Cristo –
Hércules exaure o centauro. Para se vingar, o centauro ensopa sua túnica em seu
próprio sangue e a manda para Hércules, que a coloca em si. Ela gruda em sua
carne e o queima cruelmente, contudo ele não pode tirá-la. Eventualmente ele a
arranca – com sua carne e com sua vida. Esta é uma imagem que alguém poderia
habilmente usar para mostrar o que acontece a Cristo quando ele toma sobre si a
nossa humanidade, nossa humanidade que é como a túnica do centauro, ensopada
com o assassino sangue mortal. Então Ele sai do Jordão, pronto para a vitória,
e sobre Sua humanidade vem o Espírito Santo de Deus na forma de uma pomba, o
Espírito que O enche de poder, não somente em sua divindade, a sua humanidade
também é agora preenchida da total perfeição.
Isso será revelado a
nós mais tarde, na Transfiguração, quando não é a divindade de Deus que
resplandece a despeito da humanidade. Naquele momento nós vemos Sua humanidade
transfigurada com Divindade e resplandecente em toda sua glória. Mas esta
situação, esta visão é indescritível. Os Apóstolos podiam vê-la, mas eles não
podiam tomar parte dela. É somente na Ressurreição, quando toda separação será
superada, que a vitória de Cristo, Sua ressuscitada e transfigurada humanidade,
será capaz de tornar-se nossa. No contexto da humanidade de Cristo todas as
tentações oferecem um duplo desafio. O primeiro desafio é este: “Você foi preenchido de poder. Não há limite
para seu poder. O Espírito não está somente sobre você, mas dentro de você.
Deus está em você. Por que você não pode fazer o que você escolher, se você é o
Filho de Deus?” Desafiando Cristo a provar que Ele era Deus, o diabo com
efeito diz: “Você criou o mundo. Faça-o
diferente para sua própria conveniência. Este mundo pertence a mim, eu darei
tudo para você, desde que você se torne um dos meus súditos. Você é Deus. Você
é todo poderoso. Você está cheio do Espírito. Mostre-me isto. Jogue-se do
pináculo, para que todos possam ver e reconhecer você”. Esta é a tentação
do poder que poderia desfazer totalmente a kenosis, o esvaziamento de si
mesmo, o verdadeiro ato da Encarnação. Isto teria transformado o encarnado
Filho de Deus em um deus decaído e nada mais. Mais tarde Cristo foi tentado
novamente. Satanás reaparece enquanto Ele estava a caminho de Cesárea de Filipe,
depois Dele ter sido reconhecido por Pedro como o Filho de Deus. Cristo então
começa a falar aos seus discípulos sobre Sua Paixão, mas Pedro volta-se para
Ele e diz: “Seja misericordioso para
consigo mesmo”. Esta foi a tentação da fraqueza. “Você não pode fazer isso. Você não é de carne e sangue? Tenha piedade
de si mesmo”. E Ele disse as mesmas palavras a Pedro como ele havia dito a
Satanás: “Afasta-te de mim. Você pensa
mais nas coisas da terra e não nas coisas de Deus”. Então há duas
tentações: poder e fraqueza são igualmente tentações, e igualmente perigosas,
para Ele e para nós. Nós precisamos atingir o maravilhoso equilíbrio da fé que
permite o poder de Deus ser manifesto na fraqueza. Como São Paulo diz: “Todas as coisas são possíveis para mim no sustentado
poder de Cristo”. Para mim, “e ainda
é o poder de Cristo, não meu”.
Neste ponto Cristo
torna-se “O Homem do Sétimo Dia”. No
final da Criação, o Senhor descansou no Sabbath, o sétimo dia. O que aconteceu?
Neste momento quando, tendo completado todo o seu trabalho criativo, Ele
entregou-o ao homem para trazê-lo à perfeição. São Máximo, o Confessor, nos diz
que o homem foi criado de uma certa maneira que ele estava em princípio não
somente com todo o mundo material e físico, mas também com o mundo espiritual
dos anjos e de Deus mesmo. Estando no verdadeiro centro, capaz de comungar com
um e com o outro, o homem podia unir ambos, e então levar toda a criação para
aquela perfeição que é expressada por São Paulo como “Deus sendo tudo em
todos”. O homem foi posto para cuidar da criação, mas ele abandonou isso nas
mãos de Satanás. Então Cristo torna-se o Novo Adão, o Único que toma sobre si
mesmo ser o Líder, a cabeça do mundo criado, para levá-lo para sua vocação. Eis
porque tantos milagres de Cristo são feitos no Sabbath. É o Dia do Homem. É o
dia quando Deus descansou do seu trabalho e disse: “Agora é para o homem conduzir à perfeição o que foi feito perfeito, e
restaurar à totalidade o que foi fragmentado e quebrado e destruído”.
Cristo não fez milagres no Sabbath para provocar os fariseus e os escribas.
Estes milagres foram atos pelos quais Ele confirmava a Si mesmo como o Novo
Adão que toma sobre si mesmo e cumpre a vocação do homem. Aceitando ser o Novo
Adão, ele toma sobre si o complexo destino de ser Homem Perfeito, e por essa
razão tem um absoluto horror e repulsa contra todo pecado, todo mal e toda
impureza.
Assim Ele aceita ser
vestido com nossa natureza decaída, com toda sua fragilidade, porém sem pecado.
Ele foi crucificado pela fragilidade do homem decaído, porque Ele é Ele mesmo
livre. Como São Máximo, o Confessor, diz: “Na
Encarnação Cristo torna-Se imortal, porque é impossível conceber uma humanidade
unida inseparavelmente à Divindade e permanecer mortal. Agora ele toma sobre si
mesmo tudo, inclusive a mortalidade”. E Ele também toma sobre si a própria
condição da mortalidade – a perda de Deus – a fim de ser totalmente um conosco.
Então como Deus Ele é o Amor crucificado. Como homem, Ele é o Homem Perfeito,
crucificado pela imperfeição do mundo que Ele aceitou carregar na forma de Sua
carne. Deste modo Ele se acha na história com uma dupla solidariedade. Ele é
totalmente, irreversivelmente e definitivamente um com Deus. Mas ao mesmo tempo
Ele é tão definitivamente e tão absolutamente, por escolha e por desejo de
amor, um com o mundo decaído. O resultado é este, enquanto Ele é de ambos, Ele
é rejeitado por ambos. Porque Ele é do próprio Deus, Ele é rejeitado pelo
homem; Ele precisa morrer “do lado de
fora do muro”. Ele não pode nem mesmo ser morto em Jerusalém. Ele não pode
ser morto, como os profetas, no templo ou dentro dos preceitos do templo. Ele
precisa ser rejeitado da real cidade dos homens. Porque Ele se fez um com o
homem e aceitou a situação final do homem, o abandonado de Deus em Adão, Ele
tem que morrer sozinho, sem Deus. Isto é o que o Arquimandrita Sofrônio uma vez
chamou de “o desmaio metafísico”, um
momento quando, na Sua humanidade, na Sua morte, Ele perde o sentido de ser um
com o Pai. “Deus meu, Deus meu, porque me abandonaste?” Esta não é uma
recitação do Salmo. Ninguém recita Salmos quando está morrendo na Cruz. Alguém
grita, “Senhor, tem piedade”. Outro
grita sem palavras. Mas ninguém recita Salmos para edificação dos que estão em
volta. A perda de Deus é um acontecimento real. Cristo não pode morrer, de
outra forma senão perdendo Deus. Esta é a tragédia da Cruz. Esta é a
incompreensível grandeza do Amor divino. Ele não é somente vulnerável naquele
momento. Ele é desfeito.
Em seu discurso, o
Bispo George definiu morte como extinção. Eu não acredito que isso seja
verdade. No Antigo Testamento, morte é um atroz e aterrorizante momento quando
o corpo e alma são separados um do outro. A alma de cada um de nós que perdeu
Deus na terra, através do pecado de nossos primeiros pais e o nosso próprio,
desce aos infernos; no inferno, o lugar onde Deus não está. O corpo, que era o
único meio pelo qual nós podíamos nos comunicar com Deus – pelos nossos gritos
para Ele, pela ânsia, pela esperança, pelo desejo, está desfeito em corrupção. É
a absoluta separação da alma do homem vivente de Deus que é a tragédia da morte
e inferno no Velho Testamento. Este é o significado do ícone da Angústia do
Inferno, ou pelas palavras “Ele desceu aos infernos” do Credo Apostólico. Alma
e Corpo são separados. Mas a Divindade não abandona nem Seu corpo nem Sua alma.
O corpo de Cristo permanece incorruptível, porque ele é inseparavelmente unido
com a Divindade. A alma de Cristo desce aos infernos, como o orante diz, no
esplendor de sua Divindade. E então, o lugar onde Deus não estava, o lugar de
Sua total e radical ausência, é cheio com a divina Presença. Isto explica as
palavras do Salmo: “Onde eu posso me
esconder da tua face? No céu é tua habitação, no inferno tu estás também”.
Isto, então, é a vitória. Isto é o que acontece na Sexta-feira Santa quando, no
final das Matinas, nós já cantamos a Ressurreição. A Ressurreição não é
simplesmente a ressurreição do corpo de Cristo. É a vitória sobre a morte,
sobre o pecado, sobre Satanás. O inferno é esvaziado e devastado. E Cristo
descansa na tumba, como Deus no Sétimo Dia. A vitória foi alcançada. Não
somente a vitória da criação que abriu a trágica história da humanidade, mas a
vitória definitiva. No sábado nós cantamos a Ressurreição porque corpo e alma
estão unidos agora. Cristo aparece para nós vitorioso. A separação foi desfeita
pela Cruz e pela descida aos infernos. A separação não pode mais abraçar
Cristo, nem na tumba nem no inferno. A Ressurreição é o inevitável e glorioso
resultado desta vitória. Então vem a Ascensão, quando nós vemos o Filho do
Homem sentado na mão direita da Glória. Nós vemos de onde nós mesmos
pertencemos; e nós podemos dizer, com São Paulo, que nossa vida está “escondida com Cristo em Deus”.
Sourozh
1983. N.14. P.1-13
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