O verdadeiro herói da quaresma é o corpo
COLOSIMO Jean-François
tradução de monja Rebeca (Pereira)
Por que, durante a
Quaresma, os ortodoxos dão um tão grande lugar ao jejum?
A Quaresma é uma regra. Uma
regra de jejum, universalmente aceita, muito estrita: sete semanas de
abstinência de carne, laticínios, ovos e peixe. Durante dois meses,
todo mundo renuncia ao sangue, à animalidade. Este jejum é
acompanhado de períodos de abstinência severa, onde não comemos
nada: bem como os três primeiros dias da Grande Quaresma. Muitas
pessoas o fazem. E assim, na primeira refeição depois da comunhão
eucarística que segue estes três dias de jejum rigoroso, o gosto
das coisas é completamente extraordinário! Sentimos em nossos
corpos a própria idéia de estarmos nas mãos de Deus. É uma das
primeiras lições da Quaresma.
O jejum pode ser ele
compreendido, no século XXI, como sendo uma privação só de
alimentos?
É claro que não existe somente
o jejum de alimentos! Não se trata de jejuar e ir ao baile todas as
noites... mas comecemos primeiramente pelo ventre, pelo instinto. A
Quaresma é um tempo de luto, mas dum luto jubiloso, pacífico,
apaziguado, radioso. É bom que o corpo pague seu tributo. O jejum de
alimentos permite ritmar diferentemente o tempo. Ele provoca rupturas
interessantes: não podemos mais sair e receber. É um apelo
extremamente forte na cotidianidade. Sobretudo, ele leva a pensar em
outros jejuns: como o da carne, compreendendo o casamento. Existe
também o silêncio, ou ainda o jejum do tempo: saber abrandar as
coisas, no lugar de estar na agitação. Mas não escolhemos nosso
jejum: é necessário passar pela suspensão da Criação na Liturgia
e pelo jejum vivido em comunhão.
Como os ortodoxos vivem a
Quaresma no plano litúrgico?
É um tempo de ofícios
específicos, com textos próprios centrados sobre o sentido do
retorno a Deus. A Liturgia da Quaresma descreve a queda do homem, sua
história espiritual e sua salvação. A mistura do jejum e da
abundância dos ofícios torna este tempo realmente particular para o
ortodoxo. O horizonte de Páscoa torna-se verdadeiramente um
horizonte de esperança, no sentido mais concreto do termo: o tempo
pós Páscoa permitirá de reatar com um alimento vivificante e
tornar leve a Liturgia.
Qual é o lugar da dimensão
do partilhar?
A Quaresma não é somente um
tempo forte de partilha litúrgica, mas também de partilha
comunitária onde os ortodoxos se encontram. E lá, o personagem
central e o pobre. Em grego, existem dois vocábulos para “pobre”:
penês
e ptôchos.
O penês
é aquele que tem necessidade daquilo que podemos cumular pela
filantropia. O ptôchos
é o pobre absoluto, o qual não podemos cumular a espera. Só
podemos nos livrar dele dando-lhe aquilo que nos custa. Ora, o quê
nos custa, senão nós mesmos? Este pobre é a imagem de Deus sobre a
terra. Todas as privações da Quaresma não têm outro sentido além
da caridade.
A Quaresma é então um
tempo de conversão?
A grande palavra, é metanóia:
o reverter-se, em grego, quer dizer arrependimento, o retorno a Deus
(o contrário de metanóia,
é a paranóia!). Logo, é um convite a descobrir que eu não sou o
centro do mundo: antes de julgar os outros, devo me julgar a mim
mesmo. A Quaresma é o tempo de julgamento. É
necessário fazer esta experiência do julgamento de nós mesmos para
chegar ao perdão. Não que seja bom em si julgar-se, mas nos é
necessário compreender a que ponto estamos enfermos, para provar
como somos perdoados e o quanto devemos perdoar. É o que os Padres
do deserto chamam de penthos,
a “jubilosa tristeza” ou a “alegria dolorosas”. Dolorosa,
porque provamos na paciência, tal como o Cristo em Sua Paixão. Mas
este sofrimento de estar longe de Deus tornar-se também uma alegria,
pois que ele nos aproxima do Deus Que nos libera. A Quaresma é a
experiência desta libertação. No deserto, fazemos a experiência
de nossos limites, e eis que a graça ergue nossos limites.
Não existe certo risco dum
dolorismo?
Absolutamente não! Lastimar-se
antropologicamente sobre o limite, descobrir sua finitude e ver como
ai habita o infinito de Deus, não é sofrer. O dolorismo é ainda
muito de mim. Ora, justamente, a Quaresma nos convida a suspendermos
nossa psicologia, este diálogo perpétuo do eu com o eu. A radiosa
tristeza é compreender que somos libertados. Descobrimos o quanto,
no sono e na saciedade, havíamos esquecido de Deus. Poderíamos nos
afligir, mas a redescoberta de Sua presença é tão boa que nos
encontramos num estado de ultrapassagem. Logo não é uma
glorificação do sofrimento mas, muito pelo contrário, a
redescoberta do amor louco de Deus.
O jejum e a vigília permitem
estarmos atentos, no corpo e no tempo, à presença de Deus. Por que
jejuamos? Para aprendermos a ter fome e sede de outra maneira, sair
do biológico. Por que vigiamos? Para aprendermos a esperar, a vencer
a noite e a obscuridade, vencer o esquecimento e o que mais se
assemelha à morte: o sono. Para vencermos a irrealidade do sonho.
Assim, fazemos o luto da ilusão que representa nossa vida biológica.
Ao acreditarmos sermos imortais nos lançamos sobre os alimentos, nos
lançamos sobre nossos leitos. Ora, a Quaresma é esta suspensão: eu
não me lanço, antes me contenho e me examino: “Onde Ele está?”
“O que Ele faz?”, “O que Ele diz?” É um tempo de espera. Nós
rompemos com a morte – que representam nossos hábitos.
Como isto se traduz na
Liturgia oriental?
A Quaresma é a ocasião de dois
grandes textos da tradição ortodoxa. Primeiramente, o Grande Cânone
de Santo André de Creta, que Olivier Clèment chama o “canto das
lágrimas”. Ele evoca as lágrimas jubilosas que marcam o recomeçar
do mundo. É a água do Gênesis, as águas do Mar Vermelho, a água
maternal. É a água viva que sai do lado de Cristo sobre a Cruz.
Estas lágrimas do homem são o sinal do retorno a Deus. O homem se
redescobre capaz de render graças por ter compreendido que lhe era
inútil lastimar sua sorte. Ele compreendeu que a Ressurreição não
espera, que a graça não espera.
O outro texto que recitamos
durante a Quaresma é a Oração de Santo Efrém: “Senhor e Mestre
de minha vida, afasta de mim o espírito de preguiça, de dissipação,
de domínio e de vã-loquacidade! Concede a Teu servo, o espírito de
temperança, de humildade, de paciência e de caridade. Sim, Senhor e
Rei, concede-me que veja as minhas faltas e que não julgue a meu
irmão, pois Tu és bendito pelos séculos dos séculos. Amém. Ó
Deus, purifica-me a mim pecador (12
vezes).” Santo Efrém
o Sírio (306-373)
Por muito tempo achava esta
oração simplíssima: perguntava-me porquê a Igreja lhe concede um
lugar tão importante. De fato, ela é simples e difícil, certas
vezes. Ela parece ir de si, mas é terrivelmente difícil pô-la
em prática. E finalmente, é a
oração mais difícil que eu conheço. Pois que se chegares a
realizar este programa, logo és um Santo! Logo, estás na paz de
Deus, tendo saído das vagas
remotas do Mar Vermelho, estás a caminho da Terra prometida, saíste
do mundo, fizeste a experiência deste outro mundo que é o Reino.
A Oração de Santo Efrém se
acompanha de grandes genuflexões (grandes metanóias), que sublinham
este corpo que ora, suplica e pede a tornar-se o corpo glorioso.
Descobrimos a opacidade do corpo, para se dar contas do quanto ele
tem sede e fome de tornar-se glorioso. O grande herói da Grande
Quaresma é o corpo, porque o grande herói de Páscoa é o corpo.
Pois para a Ortodoxia, a Quaresma
é indissociável da alegria pascal.
Quem não vive a noite pascal no
Oriente cristão não sabe o quê é a Páscoa! Ele não conheceu
esta alegria comunitária, ele não provou este corpo que, depois de
semanas de privação, reata com o óleo e o vinho, com o cordeiro
cevado e tudo o que a terra traz de bom. É o banquete do Reino no
clamor do “Cristo Ressuscitou!”, até a manhã que é o renovo
matinal do mundo. Não podemos compreender a Quaresma sem esta
alegria pascal, sem esta explosão pascal, sem esta irradiação
pascal. Nesta noite, no coração das trevas é a luz que se impõe,
no coração da tristeza é a alegria que se impõe: a vida triunfa
definitivamente da morte. Na hinografia oriental, o Cristo sai do
túmulo ofercendo-Se ao inferno. E o inferno descobre que ele não
pode conter Deus. A Quaresma é uma viagem que nos preparou a
compreender tudo isto.
O quê entendes por
“viagem”?
A Quaresma é um êxodo, uma
peregrinação. O Judaísmo e o Islão são religiões à
peregrinação. Menos o Cristianismo, onde não é uma obrigação.
Pois que nossa peregrinação é espiritual: como não praticamos
mais a peregrinação como uma obrigação, é a Páscoa que é esta
viagem. Nós vamos em direção da Páscoa, que é o próprio lugar
da passagem, a realização de toda coisa, a reconciliação de Deus
e do homem no Cristo ressuscitado, porque aceitamos passar através
da morte com Ele. A quarentena do Êxodo e aquela de Cristo no
deserto se articulam perfeitamente: no Êxodo, vamos em direção à
Terra prometida e Deus está adiante de nós, enquanto Cristo parte
ao deserto para descer dentro dele.
Lá estão as duas grandes
dimensões da Quaresma: Deus como nosso horizonte e Deus como nossa
profundeza. A Quaresma é então quarenta dias de deserto, quarenta
dias de morte, onde partimos a re-encontrar a vida nova.
Levantamo-nos e partimos, mas não sabemos para onde. Existe ai uma
dimensão abraâmica: eis todo problema desta viagem que, como aquela
do Filho Pródigo, é o retorno do Exílio. Partimos em viagem mas
sem bagagem. É pelo fato de termos aceitado de nos levantarmos que
participamos deste erguer do mundo, desta re-Criação que é a
Ressurreição. Não é inocente que na Igreja primitiva, a Quaresma
preparava ao Batismo. O sentido do Batismo é aquele da Ressurreição:
morrer e renascer com Cristo.
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