Mandamentos de Deus e a liberdade humana
COSSEC Arq. Symeon
tradução de monja Rebeca (Pereira)
I. TRÁGICA LIBERDADE
A) O INSTINTO DE LIBERDADE
ESTÁ PRESENTE NO HOMEM
Todo mundo aspira à liberdade.
Eis uma das buscas mais fundamentais do homem. Esta busca chega mesmo
a ultrapassar a busca do bem-estar material, ela custa mesmo o preço
da vida. Geralmente os homens são prontos a derramar seu próprio
sangue pela liberdade da pátria, pela liberdade de seu país face a
uma invasão ou para mudar um regime político então julgado como
muito opressor. Estamos prontos a morrer pela liberdade.
Este instinto fundamental do
homem, este desejo de liberdade, está ligado à imagem de Deus
presente em todo homem. Deus criou o homem à Sua imagem e
semelhança. Ora, Deus é, por excelência, livre. A liberdade é um
dos Seus atributos fundamentais, e quase que um nome do Próprio
Deus. Se Deus é Amor, podemos também dizer que Deus é Liberdade.
Ele criou o homem à Sua imagem – livre, então, e este instinto de
liberdade encontra-se no fundo (no interior) do homem, mesmo em sua
condição de queda, mesmo em sua separação de junto de Deus.
Certamente esta imagem é recoberta por um véu, que a obscurece, e o
homem não sabe muito bem em que consiste esta liberdade, da qual ele
possui a profunda intuição; mas, no entanto, que ele a busca
geralmente lá onde não está – eis que ele, então, se afasta.
A solene afirmação de que o
homem é livre encontra-se na declaração dos direitos do homem e do
cidadão (Déclaration
des Droits de l’Homme et du Citoyen),
elaborado em 1793 na Convenção Nacional, após a Revolução
Francesa. Este texto diz: “Os
direitos naturais e imprescreptíveis do homem são a
igualdade, a liberdade, a
segurança, a propriedade”.
Logo, sobre o plano político e de direito, esta liberdade humana é
solenemente proclamada, posto que considerada como (fazendo) parte da
própria natureza do homem. Todavia, devemos constatar que, muito
geralmente, liberdade e igualdade são incompatíveis. Lá onde
existe liberdade se etabelece um regime de desigualdade; e lá onde
queremos fazer reinar a igualdade, suprimimos a liberdade. Os
exemplos de tais desviações são bem conhecidos.
Nos frontões das “Mairies”
de França (NdT:
Mairie-espécie
de micro prefeitura das pequenas cidades) encontramos inscrita a
divisa “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Isto já é mais
justo, porque se lá se encontra a fraternidade, seguramente é um
empréstimo ao Cristianismo e permite, teoricamente, à igualdade e à
liberdade de co-habitarem.
B) A LIBERDADE É AMBÍGUA
O instinto de liberdade está
omnipresente na consciência do homem. Todavia a liberdade é
ambígua. Ela é o dom mais precioso para o homem, podendo ser
utilizada (precisamente porque é livre) para a nossa salvação e
para a nossa perda. “Nós temos em mãos uma arma redutível, a
liberdade. Com ela nós podemos ser salvos ou destruídos. Deus criou
o homem dando-lhe a liberdade. Ele não pesou
que fosse melhor de não o fazer se o homem a utilizasse para se
auto-destruir... (...) mesmo se o homem utilize esta arma contra ele
próprio, vale a pena possuí-la, pois a liberdade é a
característica de Deus, Ele-Próprio” 2.
Deus não quis privar o homem do dom da liberade, mesmo apesar de
todos os riscos que esta comporta.
O tema da liberdade do homem é
omnipresente em Dostoievski, em particular em “Os Irmãos
Karamazov”, mais precisamente na “Legenda do Grande Inquisidor”.
Este último se entretem com Jesus, seu prisioneiro. O Inquisidor não
partilha a idéia de que a liberdade seria o dom mais precioso que
Deus tenha dado ao homem e reprova Jesus por não ter vindo
restringir a liberdade dos homens. Eis então o que ele diz: “Não
há nada de mais sedutor para o homem do que o livre-arbítrio,
mas também, nada de mais doloroso. Tu fizeste crescer a liberdade
humana no lugar de confiscá-la e impuseste, desta maneira, para
sempre ao ser moral os horrores desta liberdade” 3.
A tarefa da Igreja então será aliviar o homem do fardo da liberdade
que o esmaga!
De sua parte, o Padre Sofrônio
emprega quase que o mesmo discurso, mas em uma outra e diferente
perspectiva: “O dom da liberdade nos ultrapassa, não podemos
suportá-la, mas dela somos responsáveis diante de Deus e diante do
nosso próximo. Sem esta liberdade, não existimos, todavia ela nos
ultrapassa. Não podemos portá-la. (...) No entanto, apesar de tudo,
a Igreja continua a pregar esta liberdade não determinada pelo quê
ou por quem quer que seja, senão não existimos enquanto homens.”4
C) A LIBERDADE DO HOMEM É
SUBJUGADA
A liberdade do homem é à imagem
daquela de Deus, mas não é a mesma liberdade, pois aquela de Deus é
absoluta. Somente Deus é, no sentido próprio da palavra, autônomo
(do radical grego:
ser para si próprio sua própria lei). Deus tem uma liberdade
absoluta, somente Ele é, neste sentido, autônomo. Em contrapartida,
o homem só possui uma liberdade relativa, limitada. Sua liberdade
não é absoluta, ela depende de um outro, ela depende de Deus,
d’Aquele de quem a recebeu. Poderíamos dizer que se Deus é
autônomo, o homem é heterônomo. Esta liberdade comporta dois
aspectos: o primeiro, ser livre
de, o que representa
estar franquiado dos laços que nos subjugam; o segundo, ser livre
para, é a liberdade
interior. Livre de
é uma liberdade do exterior, mas livre
para é estar na
medida de analisar nossos próprios impulsos interiores. Esta
expressão se encontra muitas vezes junto ao Starets Siluan; quando
ele menciona que devemos estar livres
para orar a Deus de um
coração puro. Esta busca de uma liberdade
para é talvez mais
importante do ponto de vista espiritual. Se estamos (se nos
encontramos) em uma prisão, não estamos livres
de passear, por
exemplo, mas podemos estar livres
para orar, amar a
Deus, o nosso próximo, etc...
Já que a liberdade do homem não
é absoluta, ela é então relativa e possui limites. Vou
rapidamente recordar alguns destes limites, examinar ao que se depara
a nossa aspiração à uma liberdade ilimitada, em nossa vida
cotidiana.
1.
Os dados da vida
Primeiramente, são os dados de
nossa existência. Em primeiro lugar, não escolhi nascer. Sou
limitado pelos dados da existência que se impõem a mim, como por
exemplo, o meu sexo, a minha idade, o meio e a época em que nasci,
minhas capacidades tanto físicas como intelectuais, etc. É claro
que, neste plano lá, somos seres limitados.
Nós temos a intuição de que
estes limites deveriam poder ser ultrapassados. Nós queremos nos
ultrapassar, nos liberar de todos estes determinismos que contradizem
nossa aspiração à liberdade. O homem quer sempre se ultrapassar, o
que nos diferencia do animal que é contente de sua sorte. E esta
intuição é justa. Todavia, a constatação de nossas limitações
não deve ir muito longe e nos conduzir à idéia de que somos seres
totalmente determinados pelo meio exterior, e que não há, então,
“nada a fazer”.
Estarmos limitados em nossa
liberdade pelos “dados da existência” não quer dizer que
estamos privados do poder de auto determinação, que seríamos
totalmente o brinquedo de forças que nos são exteriores. Eis porque
não aceitamos a astrologia, ou a idéia de uma fatalidade que
pesaria sobre nós; que nossa existência seria programada de maneira
adiantada por toda a eternidade; que não poderíamos mudar nada em
nossa vida, porque tudo já está escrito em algum lugar das estrelas
ou em uma outra parte. Não somos computadores pré-programados.
2.
O quadro da vida
As circunstâncias exteriores
podem fazer com que vivamos em um país onde os libertadores
individuais, a liberdade do cidadão, são mais ou menos
restringidos. O mesmo pode acontecer no plano econômico; nossa falta
de liberdade é evidente: gostaríamos de fazer tal dispensa, mas
todavia, não possuímos os meios, por vezes mesmo para fazer face às
nossas necessidades. Somos, de igual modo, condicionados pelo
ambiente ideológico e cultural no qual vivemos e
ao qual tomamos, de nossa parte, a maioria de nossas idéias.
3.
As leis
Somos e estamos “espremidos”
por uma rede de leis que limitam consideravelmente nossa liberdade.
Não podemos fazer muitas coisas que não são necessariamente ruins,
mas que são, todavia, proibidas pela lei. Eu tomo um exemplo
evidente: o código de condução. Não é moralmente bom ou ruim o
fato de se dirigir à direita ou à esquerda da pista; na Inglaterra,
como sabeis, permanecemos à direita e é uma infração estar à
esquerda. No continente, é o contrário. Isto então é algo de
neutro, em si, mas que no entanto é constrangedor: se não nos
conformamos: eis a multa.
4.
O outro
Minha liberdade é, ela também,
limitada pelo outro. Nós somos todos limitados pelo outro: minha
liberdade termina lá onde começa aquela dos outros. O outro é a
fronteira contra a qual se depara a minha liberdade, o que é
geralmente ressentido como uma causa de frustração, de sofrimento –
e mesmo até de tormentos. Quando estais em um engarrafamento não
podeis mover, estais entalados. Não é nada de ruim em si, mas no
plano da liberdade que almeja ser absoluta, é uma limitação.
Outro exemplo: vizinhos barulhentos acima de vossa casa, limitam em
vosso imóvel, vossa liberdade e podem mesmo vos exasperar. “O
inferno são os outros” diz Sartre.
5.
Si-próprio
Finalmente, o mais temível
obstáculo à nossa liberdade, somos nós próprios. Eu mesmo sou o
meu próprio maior inimigo. Preservo em mim apegos, alienações que
me privam de minha própria liberdade. Mesmo se eu dispusesse de uma
liberdade exterior, completa, minhas alienações interiores me
privam de minha liberdade. Por exemplo: um fumante que gostaria de
parar de fumar e que não consegue. Não é o outro que o impede de
deixar de fumar; muito pelo contrário, o outro geralmente o encoraja
ou ainda o alcóolico que não consegue deixar de beber, ou ainda o
narcótico que não consegue se liberar de sua quota apesar de todos
os seus esforços. Outras escravidões estão em mim, são as minhas
paixões. A escravidão do dinheiro, a paixão de dominar, a
gulodice, os desejos carnais e todo o seu cortejo, todas as coisas
que pareceriam fáceis a ultrapassar mas que se revelam, na prática
extremamente dificéis a vencer.
Muito geralmente o homem poderia
agir livremente, mas ele não quer, no entanto, uma descrição
extremamente sugestiva nos é dada pelo escritor inglês C. S. Lewis,
em “The Great
Divorce” (O Grande
Divórcio). É a história de pessoas que estão na rua em um fim de
tarde: tudo está um pouco sombrio, chove, tudo é cinzento, uma
multidão espera o ônibus que tarda a chegar e todos se batem para
entrar primeiro. Quando finalmente eles estão no ônibus, brigam
então novamente pelo melhor lugar; em breve uma atmosfera de
querela, rivalidade, desespero... o ônibus poe-se a andar, mas ao
invés de seguir sua rota habitual, ele decola nos ares como um
avião. Pouco a pouco o leitor toma consciência de que não é a
descrição de algo real, antes uma ficção. Este ônibus chega na
pradaria onde as gentes estão felizes por poderem então sair. Pouco
a pouco, eles compreendem que estavam no inferno e que chegaram em um
lugar magnífico onde reina a paz e a serenidade. Seres luminosos se
aproximam, eles falam acerca do Paraíso e os convida. Conversas se
desenvolvem entre aqueles que escaparam do inferno e estes
embaixadores do Paraíso, que os convida a continuar suas rotas (seus
caminhos) para o céu. As conversações evoluem de uma maneira um
tanto normal, tal como as conversações que temos todos os dias.
Finalmente, contrariamente ao que poderíamos supor, mas no entanto
de uma maneira aparentemente livre e lógica, aqueles que deixaram o
ônibus dizem: “Eu me
excuso, mas creio que devo tomar o ônibus novamente, porque tenho
tal e tal tarefa importante que me espera”. Existe, por exemplo, um
Bispo que deseja regressar porque deve preparar um sermão para a
sexta-feira Santa. Um outro é pintor, sua inspiração é a de
mostrar o invisível do visível, a chama das coisas, de alguma forma
posível. Ele pergunta: “Mas se venho ao Paraíso, será que
poderei continuar a pintar isto?” O Embaixador do Paraíso lhe
responde: “Mas não é necessário posto que lá todo mundo vê
esta luz, tu não terá mais necessidade de mostrá-la em teus
quadros”. O pintor responde: “Sim, mas em todo caso, eu penso que
prefiro regressar e continuar a pintar”. Desta forma, em uma
quantidade de situações típicas, as pessoas preferem finalmente o
inferno. Este autor teve verdadeiramente uma intuição profunda: nós
não somos condenados ao inferno, nós o escolhemos, nós mesmos, nós
nos deixamos seduzir por ele. Porque não queremos realizar
sacrifícios que nos permitiriam dele escapar e de franquear
então o Paraíso, livres. Nós somos fascinados pelos nossos ídolos,
aos quais nos apegamos e permanecemos cativos.
6.
Os pensamentos passionais
Por detrás desta alienação em
que eu mesmo sou o autor e a vítima, existe como que uma força que
me ultrapassa, uma força à qual não posso resistir. Eu sou como
que uma marionete manipulada pelos cordões movidos por uma mão
invisível. Aqueles que seguram os cordões são os demônios. Eles
agem em nós, na maior parte do tempo, não de uma maneira direta,
mas através daquilo que chamamos de pensamentos. Estes pensamentos
passionais que eu tomo como meus próprios pensamentos são um
substracto psicológico ou intelectual que me pertence, que no
interior, contêm um veneno que não é meu e que provêm dos
espíritos das trevas. Uma imagem pode ajudar a compreender esta
invasão de nosso ser interior por uma energia hostil que nos aliena
– é aquela de um exército que invade um outro país, e nós somos
este país. O invasor revestiu seus soldados com o uniforme do país
que ele deseja invadir. Quando estes soldados estrangeiros chegam,
eles estão vestidos tal como os soldados do meu país. Eu não os
reconheço como invasores, antes os acolho com pressa, posto que
parecem benevolentes. Eis que então o drama se forma, se organiza, e
eu caio nas garras do diabo. A maior cilada do diabo é de fazer
acreditar que ele não existe, é fazendo-se invisível que ele
consegue ser o mais eficaz. “Nós passamos por guerras pavorosas,
nós vivemos numa era de violência e de violação das consciências
sem precedente; e eis-nos aqui, como que instalados no ventre do
monstro, semi-digeridos, desviando-nos dele segundo uma visão
tão grosseira e inocente, sob o pretexto de que não podemos – e
por causa – percebê-la”. 5
D) OS DRAMAS DA LIBERDADE
1.
Antígonas
Entre nossa intuição, nosso
instinto de liberdade e as limitações exteriores que nos alienam se
instala um conflito. Na história da literatura, temos o exemplo bem
conhecido de Antígonas. Filha de Édipo, Antígonas sente em seu
coração uma lei espiritual que aleva a transgredir a ordem de
seu tio, Creon, rei de Tebas, a qual proibía o sepultamento de
Polínico, irmão de Antígonas, morto em uma batalha no momento em
que atacava Tebas. Ele estava morto, todavia para tornar esta morte
ainda mais pavorosa, Creon havia proibido que seu cadáver fosse
enterrado. Antígonas está pronta a violar a razão do Estado, a
enterrar seu irmão, e ela se sente mesmo e até “orgulhosa de
morrer agindo desta maneira”. 6
Ela é posta
na prisão e nesta prisão se suicida. No fundo, o seu suicídio é
vão porque Creon tinha acabdo por ceder, decidindo e permitindo o
sepultamento de Polínico. Ao mesmo tempo, um outro irmão de
Antígonas se suicida, tal como a mulher de Creon, Eurídice. No caso
de Antígonas, temos a emocionante revolta da liberdade humanda
afrontada por um poder tirânico. Esta revolta contra o poder de
Creon exprime a intuição que existe algo no homem de mais precioso
que a ordem exterior da sociedade, algo de irredutível à natureza:
é a pessoa. Antígonas é uma antecipação pagã da concepção
cristã da pessoa, logo, da liberdade. No entanto, sua nobre revolta
é trágica, pois ela não chega a mudar o curso dos acontecimentos:
ela acaba em um banho de sangue.
2.
Ivan Karamazov
Uma outra forma de afirmação da
liberdade quer dizer que tudo é permitido. Mas para isso é
necessário afastar-se de Deus, pô-Lo de lado, posto que Ele é
ressentido como principal obstáculo à liberdade do homem, como o
inimigo do homem. “Os homens querem viver da maneira deles, e é
por isso que dizem que Deus não existe”, escreve o Starets Siluan.
7
Eis a perspectiva de Ivan Karamazov: “posto que Deus e a
imortalidade não existem, diz ele, ao homem é permitido tornar-se
homem-deus
(...). (Ele) poderá desde então liberar-se das regras da moral
tradicional às quais estava sujeito tal como um escravo. Para Deus,
não existe lei”. Para o homem que tomou o lugar de Deus, também
não. “Em qualquer parte em que me encontrar, declara Ivan
Karamazov, será o primeiro lugar. Tudo é permitido, um ponto é
tudo.” 8
A liberdade absoluta consiste na
faculdade de determinar sua existência em todos os planos, sem
dependência alguma, necessidade ou limite impostos do exterior. É a
liberdade de Deus. O homem não tem liberdade igual. A tentação
para o homem, criado livre à imagem de Deus, é de querer criar sua
própria existência, de se definir por ele próprio em todos os
planos, de tornar-se por
ele próprio igual a
Deus. Pois não receber o que é dado implica em um sentimento de
dependência. É à esta dependência que Adão quis se subtrair,
preferindo desobedecer a Deus, que o havia dito de não comer da
árvore do conhecimento do bem e do mal, ouvindo a voz da serpente
que lhe assegura. “E
ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda árvore do jardim
comerás livremente, mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela
não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente
morrerás” (Gen. 2,16). Em
sua posição em vias da auto deificação e afim de atingir a
liberdade absoluta, o homem vai inevitavelmente se deparar com Deus,
se revoltar contra Deus, negar a Deus. Esta revolta contra Deus
Ele-Próprio consiste no que o homem, em seu orgulho, venha a pensar
que aquele quem faz obstáculo à sua liberdade é Deus.
3.
Kirilov
Nós temos um outro exemplo deste
conflito com Deus no caso de Kirilov (um dos personagens do romance
de Dostoievski, Os
Possessos) que não
pode conceber o fato de que duas vontades possam co-existir. “Se
Deus é; toda vontade Lhe pertence, e fora de Sua vontade, eu nada
posso. Se Ele não é; toda vontade me pertence,
e devo proclamar
minha vontade própria”. 9
Eis o raciocínio de Kirilov: “Busquei durante três anos o
atributo de minha divindade e encontrei-o: o atributo de minha
divindade é a minha livre vontade”. 10
(o que, de uma certa maneira, é justo, porque em efeito existe algo
de divino no homem: é a imagem de Deus.) “Eu o encontrei! Continua
Kirilov. O atributo de minha divindade é a minha livre vontade. É
graças à minha vontade que eu posso manifestar, sob a sua forma
suprema, minha insubordinação e minha nova liberdade, minha
terrível liberdade. Pois ela é terrível. Eu me mato afim de provar
minha insubordinação, e minha nova liberdade”. E ele conclui: “Eu
devo fazer arder a cabeça, porque a manifestação suprema de minha
vontade é o suicídio”.11
Isto parece absurdo mas, se olharmos de perto, nos deparamos com o
fato de que em nossa época existem comportamentos humanos que
refletem de uma maneira ou de outra este tipo de raciocínio.
E) NIHILISMO CONTEMPORRÂNEO
Tomar o lugar de Deus no risco de
um suicídio, mesmo coletivo, ou proclamar que tudo é permitido
posto que Deus não existe, não é estranho ao
ar do tempo. Aos 8 de
agosto de 1945, dois dias após o bombardeio nuclear de Hiroshima,
Albert Camus escrevia no jornal Combat,
do qual ele era o editor: “A civilização mecânica acabou de
atingir seu último nível de selvageria. Será necessário escolher,
em um futuro mais ou menos próximo, entre o suicídio coletivo e a
utilização inteligente das conquistas científicas”. 12
Em sua sede luciferiana de
absoluto, o homem moderno tende a abolir todo limite: ele se põe ele
próprio como única e última referência e exalta a transgressão.
Fazemos da transgressão uma regra para trazer rapidamente resultado
ao “tudo é permitido” de Ivan Karamazov, em seguida ao “tudo é
possível” da tecno-ciência. “O indivíduo, dizemos, está
emancipado, mas também está órfão, terrivelmente só, o que
demonstra a inanidade da “absolutização” da autonomia: o
individualismo absoluto não tem sentido algum”. 13
II. LIBERDADE CRUCIFICADA
A. VIA DO CRISTO
A liberdade seria então sempre
trágica? A situação seria então sem saída? Na vida de Cristo, o
elemento trágico é ausente. Na tragédia, existe sempre em
cadáver,e tudo termina lá. Existe, todavia, uma certa
semelhança exterior – somente exterior – entre a posição de
Kirilov que se suicida para provar sua liberdade, e aquela de Cristo,
mas pelo seu conteúdo, no
entanto, são elas diametralmente opostas. Kirilov se mata para
encantar o fogo do céu, a divindade. É o indivíduo que se
absolutiza, se diviniza por ele prórpio somente. Cristo, ao
contrário, se esvazia de Sua divindade, Se arrasa, tal como nos diz
a Epístola aos Filipenses “mas
aniquilou-Se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-Se
semelhante aos homens”(2,7),
sacrificando-se pela salvação dos outros, obedecendo ao Pai. É
absolutamente o contrário de Kirilov, que deseja, em seu
egocentrismo absoluto, tomar o lugar de Deus, enquanto que Cristo em
Sua kenosis
renuncia à Sua divindade pela salvação dos outros.
No Jardim do Getsêmani, Cristo
diz: “Pai, se queres,
passa de mim este Cálix, todavia não se faça a Minha vontade, mas
a Tua. (Lucas 22,42)”.
Este cálice, que Ele pede ao Pai para afastá-lo, O conduz à Cruz
por obediência à vontade do Pai. O caráter livre deste sacrifício
é remarcado na Liturgia de São João Crisóstomo, onde o Presbítero
diz, logo antes das palavras da instituição da Eucaristia: “Na
noite em que foi entregue, ou antes Se entregou Ele mesmo pela vida
do mundo, tomou o pão nas Suas santas...”
e o que segue. Ao que Se entrega Cristo? Ele Se entrega
voluntariamente à morte.
Sobre a Cruz, Cristo está
totalemnte desprovido de liberdade, Ele é fixado a este madeiro por
cravos e não pode mais Se mexer, nem de um lado, nem do outro.
Todavia tudo está lá; é uma Cruz voluntária, logo uma vitória
absoluta da liberdade sobre os poderes do diabo. A agressão contra
Cristo devia trazer resultado mediante à Sua
atitude, seja desobedecer ao Pai e recusar a Cruz, seja fazer apelo
às milícias celestes ou terrestres para combater por violência
aqueles que vinham prendê-Lo. Nos dois casos, Ele teria cedido à
tentação do demônio e não teria escapado ao pecado. No entanto,
Cristo, por amor por aqueles que O crucificam, ora por eles. “E
dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. E,
repartindo os Seus vestidos lançaram sortes”. (Lucas. 23, 34).
A Cruz é a vitória aparente da
morte sobre a vida, do maligno sobre o Príncipe da Paz, da raiva
sobre o amor. Mas a realidae é toda outra: a Cruz de Cristo é a
Cruz triunfante (triunfal) que marca a derrota do diabo, pois ele
lançou-se não sobre um homem pecador (que lhe pertencia), mas ao
Deus-Homem inocente. O que procede não tarda: não é o cadáver da
tragédia, mas antes a Ressurreição de Cristo na Vitória Pascal
sobre a morte e sobre o diabo: “pela
morte Ele venceu a morte, aos que estavam no túmulo, Ele deu a
vida”.
B. FRUTOS DA RESSURREIÇÃO
Os frutos desta Ressurreição
são inúmeros, no entanto só citarei uma: a abolição do medo e da
morte. Nós confessamos a Ressurreição de Cristo e esperamos que
n’Ele participemos também à ela. Se participamos à Sua Cruz,
esperamos também participar à Sua Ressurreição. Assim, a morte
perdeu seu aguilhão que é a causa e a fonte de todos os pecados. Em
sua Epístola aos Romanos (5, 12), São Paulo escreve: “o
pecado entrou no mundo, e pelo pecado, a morte”.
Na origem de nosssos pecados se encontra nosso estado de mortalidade.
O pecado é uma tentativa desesperada de vencer a morte por nós
próprios; nós nos dirigimos a ídolos, colocando neles nossa
esperança de escapar à mortalidade. Enquanto nos afogamos, nos
apegamos a fetus de
palha, nos apegamos a
tudo que poderia nos trazer a ilusão de que somos imortais. Mas se
não temos mais medo da morte, a morte perde o seu aguilhão e assim
somos liberados do que nos incentiva ao pecado: “somente é
verdadeiramente livre aquele que
não tem medo da morte.
Pois a partir de então ele pode amar seus inimigos, à semelhença
de Cristo sobre a Cruz; a morte não tem mais poder sobre ele”.
C. AMOR DOS INIMIGOS
1.
Semelhança a Deus
Sobre a Cruz, Cristo manifestou
Sua liberdade amando aqueles que O crucificavam. O Ancião Silvano,
por sua vez, realça: “Eis a verdadeira liberdade: ela está em
Deus e vem de Deus”. Para sermos livres, devemos ser semelhantes a
Deus, e tal como Ele, amar os bons e os maus.
No Evangelho, Cristo diz: “Amai
a vossos inimigos, fazei bem aos que vos aborrecem; e, amai pois
vossos inimigos, e fazei bem, e emprestai, sem nada esperardes,
e será grande o vosso
galardão, e sereis
filhos do Altíssimo, porque Ele é bom até para com os ingratos e
máus”. (Lc.6, 27 e 35).
Por meio de nossos prodígios ascéticos e com a assistência da
graça de Deus, podemos nos tornar semelhantes a Deus no amor pelos
inimigos e, desta mesma maneira, tornarmo-nos semelhantes a
Deus que é Amor e que, em Sua justiça, ama tanto os bons como os
maus. Nós devemos nos liberar desta deformação moralista que nos
faz pensar que Deus ama somente os bons e que se desejamos ser amados
por Deus, devemos fazer boas obras. Nós não somos salvos em virtude
de nossas boas obras, nós somos salvos pelo arrependimento, porque
somos todos pecadores. Ninguém pode pretender ser salvo porque faz
algo de bom. Eis a lição da parábola do Filho Pródigo; este
último havia efetivamente levado uma vida de pecado e de devasidão
antes de se converter, enquanto que seu irmão mais velho era um
homem íntegro que havia observado escrupulosamente todos os
preceitos de seu pai. Em seu estado de compromisso farisáico e de
auto-justificação, ele recusa participar ao banquete que o Pai
(Deus) nos prepara, e no qual o Filho Pródigo, pelo seu
arrependimento, pode entrar (franquear)
2.
O amor dos inimigos manifesta a nossa liberdade
Por meio do amor dos inimigos,
nós nos assemelhamos a este Deus que ama os bons e os maus. O amor
dos inimigos é a mais alta manifestação de nossa liberdade. É
somente quando amamos nosso inimigo que o nosso conportamento não
decorre mais de nossa natureza caída, mas da liberdade. Se, seguindo
os impulsos de nossa natureza, amamos somente aqueles que nos amam,
estamos então bem distantes do Espírito de Cristo que diz: “E,
se amardes aos que vos fazem bem, que recompensa tereis? Também os
pecadores fazem o mesmo”. Lc. 6,32.
Comentando a excepcional
insistência de São Silvano o atonita acerca do amor dos inimigos, o
Metropolita Joannis Ziziulas explica: “O amor é de rigor se amamos
o justo ou aquele que é digno de ser amado (...) mas amar aquele que
não é digno significa que nós o amamos livremente, sem qualquer
outra razão, sem obrigação alguma, tanto moral como de justiça”.
14
O amor pelos
inimigos é a maneira pela qual medimos nossa semelhança a Deus,
semelhança que é propriamente a salvação, quer dizer a
deificação. Como saber se nos aproximamos deste objetivo? Bom,
temos um critério à nossa disposição “Será que eu amo ou não
os meus inimigos?” O amor pelos inimigos é a bússula
que nos permite de nos
orientarmos na via da salvação.
3.
Reposta a Kirilov
O amor dos inimigos é a resposta
mais radical a Kirilov, mas também a mais paradoxal: é por ele que
o homem torna-se verdadeiramente livre, como Deus é livre. Alguns
recusam a idéia de que é necessário amar os inimigos, muitos
aceiam-na mas não a atingem, no entanto, outros, enfim a aceitam e a
atingem – são eles os Santos. Siluan é um dentre eles.
III. LIBERTAR A LIBERDADE
A. OS MANDAMENTOS REVELAM DEUS
Em nós, a imagem de Deus é
obscurecida pelo pecado. Nós não sabemos como nos orientar, somos
um pouco como o Joãozinho
e Maria perdidos na
floresta, mais precisamante, tinham eles algumas pedrinhas brancas
que lhes permitiam de reecontrar o caminho. Para nós, são os
Mandamentos de Deus estes seixos brancos: pela observância dos
Mandamentos de Cristo e com a ajuda da graça do Espírito Santo,
podemos nos orientar e pouco a pouco restaurar em nós a imagem de
Deus. “Os Mandamentos de Deus são como sinais e postes indicadores
na via real que conduz os viajantes à Cidade Celeste”. 15
De sua parte, o Padre Sofrônio estimava que o Mandamento de Cristo
não é uma norma ética, mas sim uma fonte de vida divina em si
mesmo. Em nosso estado de queda, somos, estamos, fomos rasgados
interiormente, como nos enfatiza São Paulo: “Porque
o que faço não o aprouvo, pois o que quero isso não faço, mas o
que aborreço isso faço.” (Rm.7,15).
Ele fala do pecado enquanto
que uma entidade quase
pessoal que vive em nós e nos parasita. Como podemos escapar à esta
alienação e encontrar a verdadeira liberdade? Máximo o Confessor
responde esta questão assegurando-nos que “pela prática dos
Mandamentos, o espírito se despoja das paixões que nos assaltam”
(Centurias acerca da
caridade; I, 94). Por
“Mandamentos” é nos necessário compreender antes de tudo este
resumo da Lei e dos Profetas que prescreve de amar a Deus de todo o
nosso coração, de toda a nossa alma, de todo o nosso espírito e de
toda a nossa força, e o nosso próximo como à nós mesmos” (cf.
Marcos, 12,30-31).
“Em nosso estado atual, o
Mandamento de Cristo nos depassa. Se o realizamos, logo ele nos
coloca diante de uma descoberta um tanto feliz: os Mandamentos de
Deus não são algo de exterior, mas antes a revelação de Deus tal
como Ele é n’Ele mesmo”. 16
Nós que perecemos em um estado de ignorância e de ausência de amor
por Deus, recebemos a revelação que Deus nos dá d’Ele próprio
no Evangelho, mas Ele Se revela também pelos Seus Mandamentos; ora,
Deus não pede (ordena) algo que seja estranho. Em outras palavras,
os Mandamentos de Deus revelam como Ele é, Ele Próprio. Já que
somos criados por Ele à Sua imagem, observar os Mandamentos que Ele
nos dá só pode restaurar ou contribuir à restauração desta
imagem; tornar-se como Ele é, realizar nossa semelhança a Ele.
B. MANDAMENTOS DE DEUS E
LIBERDADE
Entre os Mandamentos de Deus e
Ele Próprio, não há discordância, todavia entre os Mandamentos de
Deus e nossa própria natureza profunda, também não, pois somos à
imagem de Deus. Só há discordância entre os Mandamentos de Deus e
o homem lá onde reina o pecado, ou onde existe conflito, resistência
e por vezes mesmo revolta contra Deus.
A via para libertar nossa
liberdade sujeita pelo pecado passa pela ascese. É isto que faz
dizer Siluan: “Para tornar-se livre, necessário é antes de tudo
ligar-se
a si próprio”. Que parodoxo! Em poucas palavras, o que é
necessário ligar em si são as paixões. Se não temos a
possibilidade de realizar a vontade de Deus sem a Sua ajuda,
possuímos, todavia, a possibilidade de tender a isto, de desejar
esta liberação. São Macário do Egito diz: “Nossa natureza é
susceptível ao bem e ao mal, e o poder inimigo pode solicitar, mas
não constranger. Tu possuis o livre-arbítrio, tu podes inclinar à
direção que escolher (...) e quando te aproximares do Senhor pela
tua vontade, isto incita a graça te visitar”. 17
Decerto, não podemos realizar a vontade de Deus somente pelas nossas
forças, mas podemos no entanto desejá-la, e quando Deus vê que
desejamos seguir a Sua vontade, Ele vem em nosso socorro, fazendo-nos
dom de Sua graça. Um grande Santo do deserto do Egito, Aba Isaías
de Cétia, explica como pode ser que a nossa natureza humana tenha
perdido seu estado natural de glória; ele nos prescreve o que
devemos fazer para rencontrá-la. “Quando Deus cria o homem, Ele o
coloca no Paraíso com faculdades sãs e estáveis, em seu estado
natural. Todavia, quando o homem dá ouvidos ao sedutor, todas as
suas faculdades retornam a um estado contra-natureza, eis que então
ele é preciptado de sua glória (...) Aquele
que quer chegar à conformidade da natureza aniquila todas as suas
vontades segundo a carne, até que seja estabelecido no estado
natural”. 18
Perder o estado natural da glória
é a morte. O homem tem uma alma e a alma de sua alma é a glória de
Deus; se ele perde esta glória sua alma morre, ele é um
“morto-vivo”. É neste sentido que Cristo diz: “Deixai
os mortos enterrar os seus mortos” (Mt.8, 22).
Para Irineu de Lyon “A glória de Deus é o homem vivo”. O homem
vivo, vivente, não é o homem somente biologicamente
vivo, antes o homem espiritualmente
vivo, é o homem em quem a glória de Deus está presente.
Para reencontrar a conformidade à
sua natureza profunda, o homem deve aniquilar todas as suas vontades
segundo a carne até ser restabelecido no estado natural. Este estado
comporta justamente a liberdade, mas esta, em nosso estado de queda,
se realiza de uma maneira paradoxal: “É necessário se ligar”.
Então, se um homem se liga, ou enfatizando a expressão de Aba
Isaías de Cétia, se “ele
aniquila toda as suas vontades segundo a carne” – quer dizer
todas as suas paixões – , ele não renuncia à sua liberdade: ao
contrário, ele a encontra, ou re-encontra-a. A liberdade é
re-aberta quando o homem está em Deus. “Eis a verdadeira
liberdade: é de estar em Deus”. 19
No Evangelho de João: “Se
permanecerdes em Minha palavra, diz o Cristo, (...) vós conhecereis
a verdade e a verdade vos libertará” (Jo. 8, 32).
C. A VIA DE SILUAN
No que precede, cativava
constantemente presente no espírito o exemplo de São Silvano e sua
insistência sobre a necessidade de amar os inimigos, falta do que
nós perdemos a graça do Espírito Santo, a glória de Deus.
Siluan
persiste constantemente nestes dois pontos: a humildade e o amor dos
inimigos. Eis como ele se exprime: “O amor de Deus é ardente. Para
ele, os Santos suportariam todos os sofrimentos e obteriam o poder de
realizar milagres (...), quanto a mim, desejo somente aprender a
humildade e o amor de Cristo”. 20
E ainda: “O Senhor diz: amai os vossos inimigos; aquele que ama os
seus inimigos é semelhante ao Senhor, todavia só podemos amar os
inimigos pela graça do Senhor. De todas as vossas forças, irmãos,
humilhai a vossa alma para que o Senhor a ame e derrame a Sua graça,
ela não permanecerá em nós se não amarmos nossos inimigos”.
21 A humildade
e o amor dos inimigos é uma condição da vinda – sempre livre! –
em nós da graça do Espírito Santo.
Estas três realidades,
humildade, amor dos inimigos e graça do Espírito Santo estão (são)
em uma situação de casualidade recíproca. A humildade atira a
graça do Espírito Santo, a graça do Espírito Santo, de Sua parte
traz a força de amar os inimigos; o amor pelos inimigos, por sua vez
reforça em nós a humildade que abre a porta à graça do Espírito
Santo. Temos pela frente como que uma espiral que passa por estas
três realidades, não necessariamente e nem sucessivamente, pois,
decerto, elas estão implicadas cada uma nas outras duas.
São Siluan
remarca talvez mais do que qualquer outro Santo o papel da graça do
Espírito Santo na vida do crente. Quanto a
Serafim de Sarov, o objetivo da vida cristã é a aquisição do
Espírito Santo. Mas como podemos adquiri-lo? À esta questão São
Siluan responde: pela humildade e pelo amor dos inimigos. “Nós
sofremos porque não temos humildade, todavia em uma alma humilde
vive o Espírito Santo e Ele lhe confere a liberdade, a paz, o amor e
a felicidade”. 22
Eu também, escreve, ele ainda, procuro a liberdade, eu a procuro dia
e noite. E compreendi que ela está junto de Deus e que Deus a dá
aqueles que têm um coração humilde (...) àquele que se arrepende,
o Senhor dá a Sua paz e a liberdade de amar”. 23
D. LIBERDADE SEGUNDO O PADRE
SOFRÔNIO
Padre Sofrônio estima que Deus
estabelece a liberdade do homem como o princípio mais precioso que o
homem possui. É também pela Sua humildade que Deus atira a alma ao
Seu amor. Mas, na via que conduz a este amor, o homem encontra aquele
que o violenta, o diabo. O Senhor educa a alma do homem, não
livrando-a deste encontro, confronto com o mal, mas
antes, dando-lhe as forças necessárias para superá-lo. Quando ele
sucombe à influência demoníaca, o homem se desliga da vida divina
e sofre a perda de sua liberdade. Um tal estado é designado, no
ensinamento ascético pelo termo paixão.
Este termo exprime, de uma parte, a idéia de passividade e de
escravidão e, de outra parte, de sofrimento no sentido de
“desintegração” e de morte. “As paixões possuem uma força
de atração – é ainda o Padre Sofrônio quem fala – mas o
enraizar-se na alma de não importa qual imagem ou pensamento
passional não se produz jamais sem o acordo do homem pois, em toda a
existência cósmica, não há nada que seja forte o suficiente para
privar o homem-livre da possibilidade de resistir ou de recusar. No
entanto, quando um pensamento, ou uma imagem passional, implanta-se
solidamente na alma, o homem torna-se, em certo nível, um possesso.
As paixões são possessões a diversos níveis de intensidade”. 24
Para superar
suas paixões que fazem dele um ser privado de liberdade – pior: um
possesso pelas energias demoníacas – o homem deveria seguir uma
longa “terapêutica de doenças espirituais” que o afetam,
e esta o conduzirá à verdadeira
liberdade em Deus.
E. CONCLUSÃO
A Igreja é o ambiente no qual o
dom da liberdade pode se restaurar de maneira positiva, e não
destrutiva como no caso de Kirilov. É lá que o homem pode seguir a
Cristo e andar nos caminhos balizados pelos Santos que já seguiram
esta via. Para isto, é necessário passar por uma transformação
radical, por uma metanóia, por uma conversão de todo o seu ser:
Do homem carnal tornar-se um
homem espiritual,
do homem caído tornar-se um
homem novo,
do indivíduo egocêntrico
tornar-se uma pessoa em comunhão,
do homem biológico tornar-se um
homem eclesial,
do homem mortal tornar-se um
homem imortal,
como o exemplo de Melquisedeque,
“sem pai nem mãe,
sem genealogia, cujos dias não têm princípio e cuja vida nãotem
fim” (Hb. 7, 3). Em
outra palavras, ele está tão unido a Deus que ele torna-se portador
dos atributos de Deus Ele Próprio. A liberdade é precisamente um
destes atributos. “Nós não podemos nos tornar semelhantes a
Cristo até à identidade, afirma o Padre Sofrônio, mas somente pelo
arrependimento e seguindo os Seus Mandamentos, até o tempo em que os
Mandamentos de Deus tornem-se, por assim dizer, a única Lei de todo
o nosso ser. Somente então os estados de Deus nos são transmitidos
e devemos ser capazes de os assimilar”. 25
Em breve, “para ser livre, é necessário ligar-se
a si próprio” (São Siluan); e “ame e faça o que desejes”
(Bem-aventurado Agostinho). Enfim, o homem poderá dizer: “Eu sou
livre”.
NOTAS:
1.
Conferência pronunciada aquando do 10º Encontro da Associação São
Siluan o Atonita, em Crêt-Bérard, aos 11 de Outubro 2003.
2.
Ioannis Ziziulas, Homilia do 09 de Fevereiro 2003 (inédito).
3.
Os Irmãos Karamazov / Dostoievski.
4.
Palavra à comunidade 14 (inédito).
5.
A Promessa e o Perdão / Jil Silberstein – Lausanne: L’Âge
d’homme. 1986 – (p.48). La Promesse et le Pardon.
6.
Tragédies Complètes / Sophocie; trad. Paul Mazon – Paris:
Gallimard, 2002 – Folio – (p.87). Tragédias Completas.
7.
Starets Silouane / Archimandrite Sophrony – Paris: Éditions
Présence, 1996 – (p.328).
8.
Dostoievski, op. Lit. Tome II.
9.
Os Possessos / Dostoievski.
10.
Ibid.
11.
Ibid.
12.
Citado por J. –C Guillebaud. In: Le Gôut de l’Avenir – Paris:
Éditions du Seuil, 2003 – (p.106).
13.
Ibid.
14.
Ioannis Ziziulas, Homilia do 11 de Julho 2003.
15.
Les Homélies Spirituelles / Saint Macaire – Bégrolles-en-Mauges:
Abbaye de Bellefontaine, 1984 – Spiritualité Orientale; 40 –
(p.270).
16.
Arquimandrita Sofrônio, Palavra à Comunidade 12 (inédito).
17.
Les Homélies Spirituelles, p.264.
18.
Abbé Isaie. In: Recueil Ascétique – Bégrolles-en-Mauges: Abbaye
de Bellefontaine, S.D. – Spiritualité Orientale; 7 – (p.46).
19.
Starets Silouane, p.316.
20.
Ibid, p.322.
21.
Ibid, p.306.
22.
Ibid, p. 384.
23.
Ibid, p. 314.
24.
Ibid, p.148.
25.
Palavra à Comunidade 12 (inédito).
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