Mandamentos de Deus e a liberdade humana


COSSEC Arq. Symeon
tradução de monja Rebeca (Pereira)


 
 
I. TRÁGICA LIBERDADE
 
A) O INSTINTO DE LIBERDADE ESTÁ PRESENTE NO HOMEM
Todo mundo aspira à liberdade. Eis uma das buscas mais fundamentais do homem. Esta busca chega mesmo a ultrapassar a busca do bem-estar material, ela custa mesmo o preço da vida. Geralmente os homens são prontos a derramar seu próprio sangue pela liberdade da pátria, pela liberdade de seu país face a uma invasão ou para mudar um regime político então julgado como muito opressor. Estamos prontos a morrer pela liberdade.

Este instinto fundamental do homem, este desejo de liberdade, está ligado à imagem de Deus presente em todo homem. Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança. Ora, Deus é, por excelência, livre. A liberdade é um dos Seus atributos fundamentais, e quase que um nome do Próprio Deus. Se Deus é Amor, podemos também dizer que Deus é Liberdade. Ele criou o homem à Sua imagem – livre, então, e este instinto de liberdade encontra-se no fundo (no interior) do homem, mesmo em sua condição de queda, mesmo em sua separação de junto de Deus. Certamente esta imagem é recoberta por um véu, que a obscurece, e o homem não sabe muito bem em que consiste esta liberdade, da qual ele possui a profunda intuição; mas, no entanto, que ele a busca geralmente lá onde não está – eis que ele, então, se afasta.

A solene afirmação de que o homem é livre encontra-se na declaração dos direitos do homem e do cidadão (Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen), elaborado em 1793 na Convenção Nacional, após a Revolução Francesa. Este texto diz: “Os direitos naturais e imprescreptíveis do homem são a igualdade, a liberdade, a segurança, a propriedade”. Logo, sobre o plano político e de direito, esta liberdade humana é solenemente proclamada, posto que considerada como (fazendo) parte da própria natureza do homem. Todavia, devemos constatar que, muito geralmente, liberdade e igualdade são incompatíveis. Lá onde existe liberdade se etabelece um regime de desigualdade; e lá onde queremos fazer reinar a igualdade, suprimimos a liberdade. Os exemplos de tais desviações são bem conhecidos.

Nos frontões das “Mairies” de França (NdT: Mairie-espécie de micro prefeitura das pequenas cidades) encontramos inscrita a divisa “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Isto já é mais justo, porque se lá se encontra a fraternidade, seguramente é um empréstimo ao Cristianismo e permite, teoricamente, à igualdade e à liberdade de co-habitarem.
 
B) A LIBERDADE É AMBÍGUA

O instinto de liberdade está omnipresente na consciência do homem. Todavia a liberdade é ambígua. Ela é o dom mais precioso para o homem, podendo ser utilizada (precisamente porque é livre) para a nossa salvação e para a nossa perda. “Nós temos em mãos uma arma redutível, a liberdade. Com ela nós podemos ser salvos ou destruídos. Deus criou o homem dando-lhe a liberdade. Ele não pesou que fosse melhor de não o fazer se o homem a utilizasse para se auto-destruir... (...) mesmo se o homem utilize esta arma contra ele próprio, vale a pena possuí-la, pois a liberdade é a característica de Deus, Ele-Próprio” 2. Deus não quis privar o homem do dom da liberade, mesmo apesar de todos os riscos que esta comporta.

O tema da liberdade do homem é omnipresente em Dostoievski, em particular em “Os Irmãos Karamazov”, mais precisamente na “Legenda do Grande Inquisidor”. Este último se entretem com Jesus, seu prisioneiro. O Inquisidor não partilha a idéia de que a liberdade seria o dom mais precioso que Deus tenha dado ao homem e reprova Jesus por não ter vindo restringir a liberdade dos homens. Eis então o que ele diz: “Não há nada de mais sedutor  para o homem do que o livre-arbítrio, mas também, nada de mais doloroso. Tu fizeste crescer a liberdade humana no lugar de confiscá-la e impuseste, desta maneira, para sempre ao ser moral os horrores desta liberdade” 3. A tarefa da Igreja então será aliviar o homem do fardo da liberdade que o esmaga!

De sua parte, o Padre Sofrônio emprega quase que o mesmo discurso, mas em uma outra e diferente perspectiva: “O dom da liberdade nos ultrapassa, não podemos suportá-la, mas dela somos responsáveis diante de Deus e diante do nosso próximo. Sem esta liberdade, não existimos, todavia ela nos ultrapassa. Não podemos portá-la. (...) No entanto, apesar de tudo, a Igreja continua a pregar esta liberdade não determinada pelo quê ou por quem quer que seja, senão não existimos enquanto homens.”4
 
C) A LIBERDADE DO HOMEM É SUBJUGADA
A liberdade do homem é à imagem daquela de Deus, mas não é a mesma liberdade, pois aquela de Deus é absoluta. Somente Deus é, no sentido próprio da palavra, autônomo (do radical grego: ser para si próprio sua própria lei). Deus tem uma liberdade absoluta, somente Ele é, neste sentido, autônomo. Em contrapartida, o homem só possui uma liberdade relativa, limitada. Sua liberdade não é absoluta, ela depende de um outro, ela depende de Deus, d’Aquele de quem a recebeu. Poderíamos dizer que se Deus é autônomo, o homem é heterônomo. Esta liberdade comporta dois aspectos: o primeiro, ser livre de, o que representa estar franquiado dos laços que nos subjugam; o segundo, ser livre para, é a liberdade interior. Livre de é uma liberdade do exterior, mas livre para é estar na medida de analisar nossos próprios impulsos interiores. Esta expressão se encontra muitas vezes junto ao Starets Siluan; quando ele menciona que devemos estar livres para orar a Deus de um coração puro. Esta busca de uma liberdade para é talvez mais importante do ponto de vista espiritual. Se estamos (se nos encontramos) em uma prisão, não estamos livres de passear, por exemplo, mas podemos estar livres para orar, amar a Deus, o nosso próximo, etc...

Já que a liberdade do homem não é absoluta, ela  é então relativa e possui limites. Vou rapidamente recordar alguns destes limites, examinar ao que se depara a nossa aspiração à uma liberdade ilimitada, em nossa vida cotidiana.
 
1. Os dados da vida
Primeiramente, são os dados de  nossa existência. Em primeiro lugar, não escolhi nascer. Sou limitado pelos dados da existência que se impõem a mim, como por exemplo, o meu sexo, a minha idade, o meio e a época em que nasci, minhas capacidades tanto físicas como intelectuais, etc. É claro que, neste plano lá, somos seres limitados.
 
Nós temos a intuição de que estes limites deveriam poder ser ultrapassados. Nós queremos nos ultrapassar, nos liberar de todos estes determinismos que contradizem nossa aspiração à liberdade. O homem quer sempre se ultrapassar, o que nos diferencia do animal que é contente de sua sorte. E esta intuição é justa. Todavia, a constatação de nossas limitações não deve ir muito longe e nos conduzir à idéia de que somos seres totalmente determinados pelo meio exterior, e que não há, então, “nada a fazer”.

Estarmos limitados em nossa liberdade pelos “dados da existência” não quer dizer que estamos privados do poder de auto determinação, que seríamos totalmente o brinquedo de forças que nos são exteriores. Eis porque não aceitamos a astrologia, ou a idéia de uma fatalidade que pesaria sobre nós; que nossa existência seria programada de maneira adiantada por toda a eternidade; que não poderíamos mudar nada em nossa vida, porque tudo já está escrito em algum lugar das estrelas ou em uma outra parte. Não somos computadores pré-programados.
 
2. O quadro da vida
As circunstâncias exteriores podem fazer com que vivamos em um país onde os libertadores individuais, a liberdade do cidadão, são mais ou menos restringidos. O mesmo pode acontecer no plano econômico; nossa falta de liberdade é evidente: gostaríamos de fazer tal dispensa, mas todavia, não possuímos os meios, por vezes mesmo para fazer face às nossas necessidades. Somos, de igual modo, condicionados pelo ambiente ideológico e cultural no qual vivemos e ao qual tomamos, de nossa parte, a maioria de nossas idéias.
 
3. As leis
Somos e estamos “espremidos” por uma rede de leis que limitam consideravelmente nossa liberdade. Não podemos fazer muitas coisas que não são necessariamente ruins, mas que são, todavia, proibidas pela lei. Eu tomo um exemplo evidente: o código de condução. Não é moralmente bom ou ruim o fato de se dirigir à direita ou à esquerda da pista; na Inglaterra, como sabeis, permanecemos à direita e é uma infração estar à esquerda. No continente, é o contrário. Isto então é algo de neutro, em si, mas que no entanto é constrangedor: se não nos conformamos: eis a multa.
 
4. O outro
Minha liberdade é, ela também, limitada pelo outro. Nós somos todos limitados pelo outro: minha liberdade termina lá onde começa aquela dos outros. O outro é a fronteira contra a qual se depara a minha liberdade, o que é geralmente ressentido como uma causa de frustração, de sofrimento – e mesmo até de tormentos. Quando estais em um engarrafamento não podeis mover, estais entalados. Não é nada de ruim em si, mas no plano da liberdade que almeja ser absoluta, é uma limitação. Outro exemplo: vizinhos barulhentos acima de vossa casa, limitam em vosso imóvel, vossa liberdade e podem mesmo vos exasperar. “O inferno são os outros” diz Sartre.
 
5. Si-próprio
Finalmente, o mais temível obstáculo à nossa liberdade, somos nós próprios. Eu mesmo sou o meu próprio maior inimigo. Preservo em mim apegos, alienações que me privam de minha própria liberdade. Mesmo se eu dispusesse de uma liberdade exterior, completa, minhas alienações interiores me privam de minha liberdade. Por exemplo: um fumante que gostaria de parar de fumar e que não consegue. Não é o outro que o impede de deixar de fumar; muito pelo contrário, o outro geralmente o encoraja ou ainda o alcóolico que não consegue deixar de beber, ou ainda o narcótico que não consegue se liberar de sua quota apesar de todos os seus esforços. Outras escravidões estão em mim, são as minhas paixões. A escravidão do dinheiro, a paixão de dominar, a gulodice, os desejos carnais e todo o seu cortejo, todas as coisas que pareceriam fáceis a ultrapassar mas que se revelam, na prática extremamente dificéis a vencer.

Muito geralmente o homem poderia agir livremente, mas ele não quer, no entanto, uma descrição extremamente sugestiva nos é dada pelo escritor inglês C. S. Lewis, em “The Great Divorce” (O Grande Divórcio). É a história de pessoas que estão na rua em um fim de tarde: tudo está um pouco sombrio, chove, tudo é cinzento, uma multidão espera o ônibus que tarda a chegar e todos se batem para entrar primeiro. Quando finalmente eles estão no ônibus, brigam então novamente pelo melhor lugar; em breve uma atmosfera de querela, rivalidade, desespero... o ônibus poe-se a andar, mas ao invés de seguir sua rota habitual, ele decola nos ares como um avião. Pouco a pouco o leitor toma consciência de que não é a descrição de algo real, antes uma ficção. Este ônibus chega na pradaria onde as gentes estão felizes por poderem então sair. Pouco a pouco, eles compreendem que estavam no inferno e que chegaram em um lugar magnífico onde reina a paz e a serenidade. Seres luminosos se aproximam, eles falam acerca do Paraíso e os convida. Conversas se desenvolvem entre aqueles que escaparam do inferno e estes embaixadores do Paraíso, que os convida a continuar suas rotas (seus caminhos) para o céu. As conversações evoluem de uma maneira um tanto normal, tal como as conversações que temos todos os dias. Finalmente, contrariamente ao que poderíamos supor, mas no entanto de uma maneira aparentemente livre e lógica, aqueles que deixaram o ônibus dizem: “Eu me excuso, mas creio que devo tomar o ônibus novamente, porque tenho tal e tal tarefa importante que me espera”. Existe, por exemplo, um Bispo que deseja regressar porque deve preparar um sermão para a sexta-feira Santa. Um outro é pintor, sua inspiração é a de mostrar o invisível do visível, a chama das coisas, de alguma forma posível. Ele pergunta: “Mas se venho ao Paraíso, será que poderei continuar a pintar isto?” O Embaixador do Paraíso lhe responde: “Mas não é necessário posto que lá todo mundo vê esta luz, tu não terá mais necessidade de mostrá-la em teus quadros”. O pintor responde: “Sim, mas em todo caso, eu penso que prefiro regressar e continuar a pintar”. Desta forma, em uma quantidade de situações típicas, as pessoas preferem finalmente o inferno. Este autor teve verdadeiramente uma intuição profunda: nós não somos condenados ao inferno, nós o escolhemos, nós mesmos, nós nos deixamos seduzir por ele. Porque não queremos realizar sacrifícios que nos permitiriam  dele escapar e de franquear então o Paraíso, livres. Nós somos fascinados pelos nossos ídolos, aos quais nos apegamos e permanecemos cativos.
 
6. Os pensamentos passionais
Por detrás desta alienação em que eu mesmo sou o autor e a vítima, existe como que uma força que me ultrapassa, uma força à qual não posso resistir. Eu sou como que uma marionete manipulada pelos cordões movidos por uma mão invisível. Aqueles que seguram os cordões são os demônios. Eles agem em nós, na maior parte do tempo, não de uma maneira direta, mas através daquilo que chamamos de pensamentos. Estes pensamentos passionais que eu tomo como meus próprios pensamentos são um substracto psicológico ou intelectual que me pertence, que no interior, contêm um veneno que não é meu e que provêm dos espíritos das trevas. Uma imagem pode ajudar a compreender esta invasão de nosso ser interior por uma energia hostil que nos aliena – é aquela de um exército que invade um outro país, e nós somos este país. O invasor revestiu seus soldados com o uniforme do país que ele deseja invadir. Quando estes soldados estrangeiros chegam, eles estão vestidos tal como os soldados do meu país. Eu não os reconheço como invasores, antes os acolho com pressa, posto que parecem benevolentes. Eis que então o drama se forma, se organiza, e eu caio nas garras do diabo. A maior cilada do diabo é de fazer acreditar que ele não existe, é fazendo-se invisível que ele consegue ser o mais eficaz. “Nós passamos por guerras pavorosas, nós vivemos numa era de violência e de violação das consciências sem precedente; e eis-nos aqui, como que instalados no ventre do monstro, semi-digeridos, desviando-nos dele segundo uma visão tão grosseira e inocente, sob o pretexto de que não podemos – e por causa – percebê-la”. 5
 
D) OS DRAMAS DA LIBERDADE
1. Antígonas
Entre nossa intuição, nosso instinto de liberdade e as limitações exteriores que nos alienam se instala um conflito. Na história da literatura, temos o exemplo bem conhecido de Antígonas. Filha de Édipo, Antígonas sente em seu coração uma lei espiritual que  aleva a transgredir a ordem de seu tio, Creon, rei de Tebas, a qual proibía o sepultamento de Polínico, irmão de Antígonas, morto em uma batalha no momento em que atacava Tebas. Ele estava morto, todavia para tornar esta morte ainda mais pavorosa, Creon havia proibido que seu cadáver fosse enterrado. Antígonas está pronta a violar a razão do Estado, a enterrar seu irmão, e ela se sente mesmo e até “orgulhosa de morrer agindo desta maneira”. 6 Ela é posta na prisão e nesta prisão se suicida. No fundo, o seu suicídio é vão porque Creon tinha acabdo por ceder, decidindo e permitindo o sepultamento de Polínico. Ao mesmo tempo, um outro irmão de Antígonas se suicida, tal como a mulher de Creon, Eurídice. No caso de Antígonas, temos a emocionante revolta da liberdade humanda afrontada por um poder tirânico. Esta revolta contra o poder de Creon exprime a intuição que existe algo no homem de mais precioso que a ordem exterior da sociedade, algo de irredutível à natureza: é a pessoa. Antígonas é uma antecipação pagã da concepção cristã da pessoa, logo, da liberdade. No entanto, sua nobre revolta é trágica, pois ela não chega a mudar o curso dos acontecimentos: ela acaba em um banho de sangue.
 
2. Ivan Karamazov
Uma outra forma de afirmação da liberdade quer dizer que tudo é permitido. Mas para isso é necessário afastar-se de Deus, pô-Lo de lado, posto que Ele é ressentido como principal obstáculo à liberdade do homem, como o inimigo do homem. “Os homens querem viver da maneira deles, e é por isso que dizem que Deus não existe”, escreve o Starets Siluan. 7 Eis a perspectiva de Ivan Karamazov: “posto que Deus e a imortalidade não existem, diz ele, ao homem é permitido tornar-se homem-deus (...). (Ele) poderá desde então liberar-se das regras da moral tradicional às quais estava sujeito tal como um escravo. Para Deus, não existe lei”. Para o homem que tomou o lugar de Deus, também não. “Em qualquer parte em que me encontrar, declara Ivan Karamazov, será o primeiro lugar. Tudo é permitido, um ponto é tudo.” 8

A liberdade absoluta consiste na faculdade de determinar sua existência em todos os planos, sem dependência alguma, necessidade ou limite impostos do exterior. É a liberdade de Deus. O homem não tem liberdade igual. A tentação para o homem, criado livre à imagem de Deus, é de querer criar sua própria existência, de se definir por ele próprio em todos os planos, de tornar-se por ele próprio igual a Deus. Pois não receber o que é dado implica em um sentimento de dependência. É à esta dependência que Adão quis se subtrair, preferindo desobedecer a Deus, que o havia dito de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, ouvindo a voz da serpente que lhe assegura. “E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gen. 2,16). Em sua posição em vias da auto deificação e afim de atingir a liberdade absoluta, o homem vai inevitavelmente se deparar com Deus, se revoltar contra Deus, negar a Deus. Esta revolta contra Deus Ele-Próprio consiste no que o homem, em seu orgulho, venha a pensar que aquele quem faz obstáculo à sua liberdade é Deus.
 
3. Kirilov
Nós temos um outro exemplo deste conflito com Deus no caso de Kirilov (um dos personagens do romance de Dostoievski, Os Possessos) que não pode conceber o fato de que duas vontades possam co-existir. “Se Deus é; toda vontade Lhe pertence, e fora de Sua vontade, eu nada posso. Se Ele não é; toda vontade me pertence, e  devo proclamar minha vontade própria”. 9 Eis o raciocínio de Kirilov: “Busquei durante três anos o atributo de minha divindade e encontrei-o: o atributo de minha divindade é a minha livre vontade”. 10 (o que, de uma certa maneira, é justo, porque em efeito existe algo de divino no homem: é a imagem de Deus.) “Eu o encontrei! Continua Kirilov. O atributo de minha divindade é a minha livre vontade. É graças à minha vontade que eu posso manifestar, sob a sua forma suprema, minha insubordinação e minha nova liberdade, minha terrível liberdade. Pois ela é terrível. Eu me mato afim de provar minha insubordinação, e minha nova liberdade”. E ele conclui: “Eu devo fazer arder a cabeça, porque a manifestação suprema de minha vontade é o suicídio”.11 Isto parece absurdo mas, se olharmos de perto, nos deparamos com o fato de que em nossa época existem comportamentos humanos que refletem de uma maneira ou de outra este tipo de raciocínio.
 
E) NIHILISMO CONTEMPORRÂNEO
Tomar o lugar de Deus no risco de um suicídio, mesmo coletivo, ou proclamar que tudo é permitido posto que Deus não existe, não é estranho ao ar do tempo. Aos 8 de agosto de 1945, dois dias após o bombardeio nuclear de Hiroshima, Albert Camus escrevia no jornal Combat, do qual ele era o editor: “A civilização mecânica acabou de atingir seu último nível de selvageria. Será necessário escolher, em um futuro mais ou menos próximo, entre o suicídio coletivo e a utilização inteligente das conquistas científicas”. 12
Em sua sede luciferiana de absoluto, o homem moderno tende a abolir todo limite: ele se põe ele próprio como única e última referência e exalta a transgressão. Fazemos da transgressão uma regra para trazer rapidamente resultado ao “tudo é permitido” de Ivan Karamazov, em seguida ao “tudo é possível” da tecno-ciência. “O indivíduo, dizemos, está emancipado, mas também está órfão, terrivelmente só, o que demonstra a inanidade da “absolutização” da autonomia: o individualismo absoluto não tem sentido algum”. 13
 
II. LIBERDADE CRUCIFICADA
A. VIA DO CRISTO
A liberdade seria então sempre trágica? A situação seria então sem saída? Na vida de Cristo, o elemento trágico é ausente. Na tragédia, existe sempre em cadáver,e tudo termina lá. Existe, todavia, uma certa semelhança exterior – somente exterior – entre a posição de Kirilov que se suicida para provar sua liberdade, e aquela de Cristo, mas pelo seu conteúdo, no entanto, são elas diametralmente opostas. Kirilov se mata para encantar o fogo do céu, a divindade. É o indivíduo que se absolutiza, se diviniza por ele prórpio somente. Cristo, ao contrário, se esvazia de Sua divindade, Se arrasa, tal como nos diz a Epístola aos Filipenses “mas aniquilou-Se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-Se semelhante aos homens”(2,7), sacrificando-se pela salvação dos outros, obedecendo ao Pai. É absolutamente o contrário de Kirilov, que deseja, em seu egocentrismo absoluto, tomar o lugar de Deus, enquanto que Cristo em Sua kenosis renuncia à Sua divindade pela salvação dos outros.

No Jardim do Getsêmani, Cristo diz: “Pai, se queres, passa de mim este Cálix, todavia não se faça a Minha vontade, mas a Tua. (Lucas 22,42)”. Este cálice, que Ele pede ao Pai para afastá-lo, O conduz à Cruz por obediência à vontade do Pai. O caráter livre deste sacrifício é remarcado na Liturgia de São João Crisóstomo, onde o Presbítero diz, logo antes das palavras da instituição da Eucaristia: “Na noite em que foi entregue, ou antes Se entregou Ele mesmo pela vida do mundo, tomou o pão nas Suas santas...” e o que segue. Ao que Se entrega Cristo? Ele Se entrega voluntariamente à morte.

Sobre a Cruz, Cristo está totalemnte desprovido de liberdade, Ele é fixado a este madeiro por cravos e não pode mais Se mexer, nem de um lado, nem do outro. Todavia tudo está lá; é uma Cruz voluntária, logo uma vitória absoluta da liberdade sobre os poderes do diabo. A agressão contra Cristo devia trazer resultado mediante à Sua atitude, seja desobedecer ao Pai e recusar a Cruz, seja fazer apelo às milícias celestes ou terrestres para combater por violência aqueles que vinham prendê-Lo. Nos dois casos, Ele teria cedido à tentação do demônio e não teria escapado ao pecado. No entanto, Cristo, por amor por aqueles que O crucificam, ora por eles. “E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. E, repartindo os Seus vestidos lançaram sortes”. (Lucas. 23, 34).

A Cruz é a vitória aparente da morte sobre a vida, do maligno sobre o Príncipe da Paz, da raiva sobre o amor. Mas a realidae é toda outra: a Cruz de Cristo é a Cruz triunfante (triunfal) que marca a derrota do diabo, pois ele lançou-se não sobre um homem pecador (que lhe pertencia), mas ao Deus-Homem inocente. O que procede não tarda: não é o cadáver da tragédia, mas antes a Ressurreição de Cristo na Vitória Pascal sobre a morte e sobre o diabo: “pela morte Ele venceu a morte, aos que estavam no túmulo, Ele deu a vida”.
 
B. FRUTOS DA RESSURREIÇÃO
Os frutos desta Ressurreição são inúmeros, no entanto só citarei uma: a abolição do medo e da morte. Nós confessamos a Ressurreição de Cristo e esperamos que n’Ele participemos também à ela. Se participamos à Sua Cruz, esperamos também participar à Sua Ressurreição. Assim, a morte perdeu seu aguilhão que é a causa e a fonte de todos os pecados. Em sua Epístola aos Romanos (5, 12), São Paulo escreve: “o pecado entrou no mundo, e pelo pecado, a morte”. Na origem de nosssos pecados se encontra nosso estado de mortalidade. O pecado é uma tentativa desesperada de vencer a morte por nós próprios; nós nos dirigimos a ídolos, colocando neles nossa esperança de escapar à mortalidade. Enquanto nos afogamos, nos apegamos a fetus de palha, nos apegamos a tudo que poderia nos trazer a ilusão de que somos imortais. Mas se não temos mais medo da morte, a morte perde o seu aguilhão e assim somos liberados do que nos incentiva ao pecado: “somente é verdadeiramente livre aquele que não tem medo da morte. Pois a partir de então ele pode amar seus inimigos, à semelhença de Cristo sobre a Cruz; a morte não tem mais poder sobre ele”.
 
C. AMOR DOS INIMIGOS
1. Semelhança a Deus
Sobre a Cruz, Cristo manifestou Sua liberdade amando aqueles que O crucificavam. O Ancião Silvano, por sua vez, realça: “Eis a verdadeira liberdade: ela está em Deus e vem de Deus”. Para sermos livres, devemos ser semelhantes a Deus, e tal como Ele, amar os bons e os maus.

No Evangelho, Cristo diz: “Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos aborrecem; e, amai pois vossos inimigos, e fazei bem, e emprestai, sem nada esperardes, e será grande o vosso galardão, e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bom até para com os ingratos e máus”. (Lc.6, 27 e 35). Por meio de nossos prodígios ascéticos e com a assistência da graça de Deus, podemos nos tornar semelhantes a Deus no amor pelos inimigos e, desta  mesma maneira, tornarmo-nos semelhantes a Deus que é Amor e que, em Sua justiça, ama tanto os bons como os maus. Nós devemos nos liberar desta deformação moralista que nos faz pensar que Deus ama somente os bons e que se desejamos ser amados por Deus, devemos fazer boas obras. Nós não somos salvos em virtude de nossas boas obras, nós somos salvos pelo arrependimento, porque somos todos pecadores. Ninguém pode pretender ser salvo porque faz algo de bom. Eis a lição da parábola do Filho Pródigo; este último havia efetivamente levado uma vida de pecado e de devasidão antes de se converter, enquanto que seu irmão mais velho era um homem íntegro que havia observado escrupulosamente todos os preceitos de seu pai. Em seu estado de compromisso farisáico e de auto-justificação, ele recusa participar ao banquete que o Pai (Deus) nos prepara, e no qual o Filho Pródigo, pelo seu arrependimento, pode entrar (franquear)
 
2. O amor dos inimigos manifesta a nossa liberdade
Por meio do amor dos inimigos, nós nos assemelhamos a este Deus que ama os bons e os maus. O amor dos inimigos é a mais alta manifestação de nossa liberdade. É somente quando amamos nosso inimigo que o nosso conportamento não decorre mais de nossa natureza caída, mas da liberdade. Se, seguindo os impulsos de nossa natureza, amamos somente aqueles que nos amam, estamos então bem distantes do Espírito de Cristo que diz: “E, se amardes aos que vos fazem bem, que recompensa tereis? Também os pecadores fazem o mesmo”. Lc. 6,32.

Comentando a excepcional insistência de São Silvano o atonita acerca do amor dos inimigos, o Metropolita Joannis Ziziulas explica: “O amor é de rigor se amamos o justo ou aquele que é digno de ser amado (...) mas amar aquele que não é digno significa que nós o amamos livremente, sem qualquer outra razão, sem obrigação alguma, tanto moral como de justiça”. 14 O amor pelos inimigos é a maneira pela qual medimos nossa semelhança a Deus, semelhança que é propriamente a salvação, quer dizer a deificação. Como saber se nos aproximamos deste objetivo? Bom, temos um critério à nossa disposição “Será que eu amo ou não os meus inimigos?” O amor pelos inimigos é a bússula que nos permite de nos orientarmos na via da salvação.
 
3. Reposta a Kirilov
O amor dos inimigos é a resposta mais radical a Kirilov, mas também a mais paradoxal: é por ele que o homem torna-se verdadeiramente livre, como Deus é livre. Alguns recusam a idéia de que é necessário amar os inimigos, muitos aceiam-na mas não a atingem, no entanto, outros, enfim a aceitam e a atingem – são eles os Santos. Siluan é um dentre eles.
 
III. LIBERTAR A LIBERDADE
A. OS MANDAMENTOS REVELAM DEUS
Em nós, a imagem de Deus é obscurecida pelo pecado. Nós não sabemos como nos orientar, somos um pouco como o Joãozinho e Maria perdidos na floresta, mais precisamante, tinham eles algumas pedrinhas brancas que lhes permitiam de reecontrar o caminho. Para nós, são os Mandamentos de Deus estes seixos brancos: pela observância dos Mandamentos de Cristo e com a ajuda da graça do Espírito Santo, podemos nos orientar e pouco a pouco restaurar em nós a imagem de Deus. “Os Mandamentos de Deus são como sinais e postes indicadores na via real que conduz os viajantes à Cidade Celeste”. 15 De sua parte, o Padre Sofrônio estimava que o Mandamento de Cristo não é uma norma ética, mas sim uma fonte de vida divina em si mesmo. Em nosso estado de queda, somos, estamos, fomos rasgados interiormente, como nos enfatiza São Paulo: “Porque o que faço não o aprouvo, pois o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço.” (Rm.7,15). Ele fala do pecado enquanto que uma entidade quase pessoal que vive em nós e nos parasita. Como podemos escapar à esta alienação e encontrar a verdadeira liberdade? Máximo o Confessor responde esta questão assegurando-nos que “pela prática dos Mandamentos, o espírito se despoja das paixões que nos assaltam” (Centurias acerca da caridade; I, 94). Por “Mandamentos” é nos necessário compreender antes de tudo este resumo da Lei e dos Profetas que prescreve de amar a Deus de todo o nosso coração, de toda a nossa alma, de todo o nosso espírito e de toda a nossa força, e o nosso próximo como à nós mesmos” (cf. Marcos, 12,30-31).

“Em nosso estado atual, o Mandamento de Cristo nos depassa. Se o realizamos, logo ele nos coloca diante de uma descoberta um tanto feliz: os Mandamentos de Deus não são algo de exterior, mas antes a revelação de Deus tal como Ele é n’Ele mesmo”. 16 Nós que perecemos em um estado de ignorância e de ausência de amor por Deus, recebemos a revelação que Deus nos dá d’Ele próprio no Evangelho, mas Ele Se revela também pelos Seus Mandamentos; ora, Deus não pede (ordena) algo que seja estranho. Em outras palavras, os Mandamentos de Deus revelam como Ele é, Ele Próprio. Já que somos criados por Ele à Sua imagem, observar os Mandamentos que Ele nos dá só pode restaurar ou contribuir à restauração desta imagem; tornar-se como Ele é, realizar nossa semelhança a Ele.
 
B. MANDAMENTOS DE DEUS E LIBERDADE
Entre os Mandamentos de Deus e Ele Próprio, não há discordância, todavia entre os Mandamentos de Deus e nossa própria natureza profunda, também não, pois somos à imagem de Deus. Só há discordância entre os Mandamentos de Deus e o homem lá onde reina o pecado, ou onde existe conflito, resistência e por vezes mesmo revolta contra Deus.

A via para libertar nossa liberdade sujeita pelo pecado passa pela ascese. É isto que faz dizer Siluan: “Para tornar-se livre, necessário é antes de tudo ligar-se a si próprio”. Que parodoxo! Em poucas palavras, o que é necessário ligar em si são as paixões. Se não temos a possibilidade de realizar a vontade de Deus sem a Sua ajuda, possuímos, todavia, a possibilidade de tender a isto, de desejar esta liberação. São Macário do Egito diz: “Nossa natureza é susceptível ao bem e ao mal, e o poder inimigo pode solicitar, mas não constranger. Tu possuis o livre-arbítrio, tu podes inclinar à direção que escolher (...) e quando te aproximares do Senhor pela tua vontade, isto incita a graça  te visitar”. 17 Decerto, não podemos realizar a vontade de Deus somente pelas nossas forças, mas podemos no entanto desejá-la, e quando Deus vê que desejamos seguir a Sua vontade, Ele vem em nosso socorro, fazendo-nos dom de Sua graça. Um grande Santo do deserto do Egito, Aba Isaías de Cétia, explica como pode ser que a nossa natureza humana tenha perdido seu estado natural de glória; ele nos prescreve o que devemos fazer para rencontrá-la. “Quando Deus cria o homem, Ele o coloca no Paraíso com faculdades sãs e estáveis, em seu estado natural. Todavia, quando o homem dá ouvidos ao sedutor, todas as suas faculdades retornam a um estado contra-natureza, eis que então ele é preciptado de sua glória (...) Aquele que quer chegar à conformidade da natureza aniquila todas as suas vontades segundo a carne, até que seja estabelecido no estado natural”. 18

Perder o estado natural da glória é a morte. O homem tem uma alma e a alma de sua alma é a glória de Deus; se ele perde esta glória sua alma morre, ele é um “morto-vivo”. É neste sentido que Cristo diz: “Deixai os mortos enterrar os seus mortos” (Mt.8, 22). Para Irineu de Lyon “A glória de Deus é o homem vivo”. O homem vivo, vivente, não é o homem somente biologicamente vivo, antes o homem espiritualmente vivo, é o homem em quem a glória de Deus está presente.

Para reencontrar a conformidade à sua natureza profunda, o homem deve aniquilar todas as suas vontades segundo a carne até ser restabelecido no estado natural. Este estado comporta justamente a liberdade, mas esta, em nosso estado de queda, se realiza de uma maneira paradoxal: “É necessário se ligar”. Então, se um homem se liga, ou enfatizando a expressão de Aba Isaías de Cétia, se “ele aniquila toda as suas vontades segundo a carne” – quer dizer todas as suas paixões – , ele não renuncia à sua liberdade: ao contrário, ele a encontra, ou re-encontra-a. A liberdade é re-aberta quando o homem está em Deus. “Eis a verdadeira liberdade: é de estar em Deus”. 19 No Evangelho de João: “Se permanecerdes em Minha palavra, diz o Cristo, (...) vós conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo. 8, 32).
 
C. A VIA DE SILUAN
No que precede, cativava constantemente presente no espírito o exemplo de São Silvano e sua insistência sobre a necessidade de amar os inimigos, falta do que nós perdemos a graça do Espírito Santo, a glória de Deus.

Siluan persiste constantemente nestes dois pontos: a humildade e o amor dos inimigos. Eis como ele se exprime: “O amor de Deus é ardente. Para ele, os Santos suportariam todos os sofrimentos e obteriam o poder de realizar milagres (...), quanto a mim, desejo somente aprender a humildade e o amor de Cristo”. 20 E ainda: “O Senhor diz: amai os vossos inimigos; aquele que ama os seus inimigos é semelhante ao Senhor, todavia só podemos amar os inimigos pela graça do Senhor. De todas as vossas forças, irmãos, humilhai a vossa alma para que o Senhor a ame e derrame a Sua graça, ela não permanecerá em nós se não amarmos nossos inimigos”. 21 A humildade e o amor dos inimigos é uma condição da vinda – sempre livre! – em nós da graça do Espírito Santo.

Estas três realidades, humildade, amor dos inimigos e graça do Espírito Santo estão (são) em uma situação de casualidade recíproca. A humildade atira a graça do Espírito Santo, a graça do Espírito Santo, de Sua parte traz a força de amar os inimigos; o amor pelos inimigos, por sua vez reforça em nós a humildade que abre a porta à graça do Espírito Santo. Temos pela frente como que uma espiral que passa por estas três realidades, não necessariamente e nem sucessivamente, pois, decerto, elas estão implicadas cada uma nas outras duas.

São Siluan remarca talvez mais do que qualquer outro Santo o papel da graça do Espírito Santo na vida do crente. Quanto a Serafim de Sarov, o objetivo da vida cristã é a aquisição do Espírito Santo. Mas como podemos adquiri-lo? À esta questão São Siluan responde: pela humildade e pelo amor dos inimigos. “Nós sofremos porque não temos humildade, todavia em uma alma humilde vive o Espírito Santo e Ele lhe confere a liberdade, a paz, o amor e a felicidade”. 22 Eu também, escreve, ele ainda, procuro a liberdade, eu a procuro dia e noite. E compreendi que ela está junto de Deus e que Deus a dá aqueles que têm um coração humilde (...) àquele que se arrepende, o Senhor dá a Sua paz e a liberdade de amar”. 23
 
D. LIBERDADE SEGUNDO O PADRE SOFRÔNIO
Padre Sofrônio estima que Deus estabelece a liberdade do homem como o princípio mais precioso que o homem possui. É também pela Sua humildade que Deus atira a alma ao Seu amor. Mas, na via que conduz a este amor, o homem encontra aquele que o violenta, o diabo. O Senhor educa a alma do homem, não livrando-a deste encontro, confronto com o mal, mas antes, dando-lhe as forças necessárias para superá-lo. Quando ele sucombe à influência demoníaca, o homem se desliga da vida divina e sofre a perda de sua liberdade. Um tal estado é designado, no ensinamento ascético pelo termo paixão. Este termo exprime, de uma parte, a idéia de passividade e de escravidão e, de outra parte, de sofrimento no sentido de “desintegração” e de morte. “As paixões possuem uma força de atração – é ainda o Padre Sofrônio quem fala – mas o enraizar-se na alma de não importa qual imagem ou pensamento passional não se produz jamais sem o acordo do homem pois, em toda a existência cósmica, não há nada que seja forte o suficiente para privar o homem-livre da possibilidade de resistir ou de recusar. No entanto, quando um pensamento, ou uma imagem passional, implanta-se solidamente na alma, o homem torna-se, em certo nível, um possesso. As paixões são possessões a diversos níveis de intensidade”. 24 Para superar suas paixões que fazem dele um ser privado de liberdade – pior: um possesso pelas energias demoníacas – o homem deveria seguir uma longa “terapêutica de doenças espirituais” que o afetam, e esta o conduzirá à verdadeira liberdade em Deus.
 
E. CONCLUSÃO
A Igreja é o ambiente no qual o dom da liberdade pode se restaurar de maneira positiva, e não destrutiva como no caso de Kirilov. É lá que o homem pode seguir a Cristo e andar nos caminhos balizados pelos Santos que já seguiram esta via. Para isto, é necessário passar por uma transformação radical, por uma metanóia, por uma conversão de todo o seu ser:
Do homem carnal tornar-se um homem espiritual,
do homem caído tornar-se um homem novo,
do indivíduo egocêntrico tornar-se uma pessoa em comunhão,
do homem biológico tornar-se um homem eclesial,
do homem mortal tornar-se um homem imortal,
como o exemplo de Melquisedeque, “sem pai nem mãe, sem genealogia, cujos dias não têm princípio e cuja vida nãotem fim” (Hb. 7, 3). Em outra palavras, ele está tão unido a Deus que ele torna-se portador dos atributos de Deus Ele Próprio. A liberdade é precisamente um destes atributos. “Nós não podemos nos tornar semelhantes a Cristo até à identidade, afirma o Padre Sofrônio, mas somente pelo arrependimento e seguindo os Seus Mandamentos, até o tempo em que os Mandamentos de Deus tornem-se, por assim dizer, a única Lei de todo o nosso ser. Somente então os estados de Deus nos são transmitidos e devemos ser capazes de os assimilar”. 25 Em breve, “para ser livre, é necessário ligar-se a si próprio” (São Siluan); e “ame e faça o que desejes” (Bem-aventurado Agostinho). Enfim, o homem poderá dizer: “Eu sou livre”.
 
NOTAS: 
1. Conferência pronunciada aquando do 10º Encontro da Associação São Siluan o Atonita, em Crêt-Bérard, aos 11 de Outubro 2003. 
2. Ioannis Ziziulas, Homilia do 09 de Fevereiro 2003 (inédito).
3. Os Irmãos Karamazov / Dostoievski. 
4. Palavra à comunidade 14 (inédito). 
5. A Promessa e o Perdão / Jil Silberstein – Lausanne: L’Âge d’homme. 1986 – (p.48). La Promesse et le Pardon. 
6. Tragédies Complètes / Sophocie; trad. Paul Mazon – Paris: Gallimard, 2002 – Folio – (p.87). Tragédias Completas. 
7. Starets Silouane / Archimandrite Sophrony – Paris: Éditions Présence, 1996 – (p.328).
8. Dostoievski, op. Lit. Tome II. 
9. Os Possessos / Dostoievski. 
10. Ibid.
11. Ibid. 
12. Citado por J. –C Guillebaud. In: Le Gôut de l’Avenir – Paris: Éditions du Seuil, 2003 – (p.106). 
13. Ibid. 
14. Ioannis Ziziulas, Homilia do 11 de Julho 2003. 
15. Les Homélies Spirituelles / Saint Macaire – Bégrolles-en-Mauges: Abbaye de Bellefontaine, 1984 – Spiritualité Orientale; 40 – (p.270).
16. Arquimandrita Sofrônio, Palavra à Comunidade 12 (inédito). 
17. Les Homélies Spirituelles, p.264.
18. Abbé Isaie. In: Recueil Ascétique – Bégrolles-en-Mauges: Abbaye de Bellefontaine, S.D. – Spiritualité Orientale; 7 – (p.46).
19. Starets Silouane, p.316.
20. Ibid, p.322. 
21. Ibid, p.306. 
22. Ibid, p. 384.
23. Ibid, p. 314.
24. Ibid, p.148.
25. Palavra à Comunidade 12 (inédito).
  

Comentários