O significado do ministerio


BEHR-SIGEL Élisabeth
tradução de monja Rebeca (Pereira)


Este texto foi publicado em inglês pelo Conselho Ecumênico das Igrejas em 1999 seguido a dois encontros que tiveram lugar em Damasco e em Constantinopla. Tais encontros tiveram por objetivo “deixar falar as mulheres ortodoxas” (e também alguns homens) acerca de muitos sujeitos relacionados a vida das mulheres na Igreja. Ai encontramos duas contribuições de Elisabeth Behr-Sigel, uma sobre “Jesus e as mulheres” (versão francesa em Discerner os signes des temps), e a outra sobre “O significado do ministério”.

Nota de introdução do sacerdote Boris Bobrinskoy: Depois de alguns anos a ascensão das mulheres em certos ministérios ordenados na Igreja torna-se cada vez mais um problema na Ortodoxia. Fato devido não somente à influência indireta de outras Igrejas, mas também ao efeito cumulativo das profundas mudanças do lugar das mulheres na sociedade moderna e a reflexão que se segue junto a certo número de mulheres ortodoxas. Uma das figuras mais remarcáveis dentre elas é Elisabeth Behr-Sigel. Nesta breve composição, ela apresenta uma síntese remarcável das discussões anteriores concernindo o significado teológico dos ministérios na Igreja.

Decerto, acerca de tal sujeito complexo acerca do qual nenhuma posição ortodoxa clara ainda não definiu (por ser um problema ainda novo), cada um pode ter intuições, convicções e mesmo até pré-julgamentos – e o ponto de vista apresentado no que se segue é uma posição respeitável dentre outras, que são igualmente respeitáveis. O que importa é que a reflexão tem lugar, mesmo se não temos ainda a saída no dado momento. A Igreja é constantemente confrontada por desafios do mundo, e se ela deve se mostrar numa eterna juventude, ela deve responder aos sinais dos tempos. Isto não significa evidentemente que deve se dobrar sob as pressões do mundo, mas antes de tudo, com a ajuda do Espírito Santo – quer dizer, na tradição de Igreja – ter respostas sérias, profundas e criativas que correspondem às novas realdiades da raça humana em seu caminho ao Reino de Deus.

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Ministério, do latim ministerium, quer dizer, etimologicamente, “serviço”. O ministéro é a função daquele que serve. Um ministro é um servidor/servo. Na linguagem eclesiástica de hoje, o campo semântico destes termos se limitou ao aspecto clerical. Falamos de “ministério” de um Bispo, de um sacerdote, ou ainda de um pastor protestante, de um rabino ou de um imam. Eles são “ministros da religião”. Por outro lado, os leigos que ocupam ofícios na Igreja, mesmo que regularmente, não são chamados de “ministros”. Seu serviço não é um “ministério”. O sacerdócio real dos fiéis leigos é reconhecido pelos teólogos, mas eles o distinguem cuidadosamente de soi-disant sacerdócio “ministerial”, próprio ao sacerdote.

Tal distinção semântica não é inocente. Ela é sintomática da separação que a instituiu e acentuou, especialmente desde a Idade Média, entre aqueles que chamamos de clero, das pessoas colocadas a parte para o serviço divino, e os leigos. Os leigos são todavia igualmente membros do povo de Deus: a palavra leigo vem do latim eclesiástico laicus, que tem sua origem no grego laos tou Theou, “povo de Deus”. A semântica parece revelar uma clivagem na realidade social da Igreja. Será que isto quer dizer que a cristandade, que começou enquanto movimento leigo – um movimento suspeito aos olhos do clero da época (foram os sacerdotes que incitaram que Jesus fosse condenado e posto a morte) – tornou-se uma instituição gerada pelo clero? Será que não existe um meio de repensar e de clarificar o sentido do sacerdócio real a luz do Evangelho, sacerdódio ao qual são chamados todos os batizados e repensar também aquele do ministéio específico que tornou-se o território/a propriedade de alguns?

Desde o início a Igreja fez uma distinção entre diferentes ofícios e ministérios. Nos textos mais antigos, tais como as cartas de Paulo, ele destaca a visão da Igreja como Corpo de Cristo, cujos membros tem funções diferentes ou ainda como um edifício espiritual construído por cada um e em cada um, com cada pessoa participante na tarefa comum segundo os carismas que ele ou ela receberam segundo a livre e soberana dispersão do Senhor pelo Espírito: “E ele designou alguns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, com o fim de preparar os santos para a obra do ministério, para que o corpo de Cristo seja edificado, até que todos alcancemos a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, e cheguemos à maturidade, atingindo a medida da plenitude de Cristo.” (Ef. 4, 11-13).

A diversidade dos ministérios é, logo, uma parte de nossa vocação divina – mas diversidade na unidade: “Há diferentes tipos de dons, mas o Espírito é o mesmo. Há diferentes tipos de ministérios, mas o Senhor é o mesmo.” (I Cor. 12, 4-5). A igreja se compreende e faz a experiência aqui de uma comunidade, ou melhor, de uma comunhão de pessoas – a imagem da Trindade – que trabalha de uma maneira conciliar para edificar o corpo de Cristo, que é também o templo do Espírito Santo.

Todavia, ao longo dos séculos, por diferentes influências e como consequência da fraqueza humana e do pecado, tal visão luminosa foi substituída por uma imagem da Igreja como uma pirâmide de “poderes” onde a distinção entre os carismas se petrificou como instrumento de separação e exclusão. De diferentes formas, tal escurecimento do verdadeiro “ser eclesial” teve lugar por vezes no Leste e no Oeste. Podemos ver um sintôma na evolução da iconostase nas igrejas ortodoxas. Ela começa como uma pequena barreira transparente, uma tribuna para as imagens do Cristo e da Mãe de Deus, mas torna-se uma parede de imagens atrás das quais, num espaço sagrado aparentemente separado do povo, o clero oficia.
No entanto, tal separação entre o clero e os leigos nunca foi um dogma da Igreja Ortodoxa e é estrangeiro à teologia ortodoxa do sacerdócio. A consciência do sacerdócio real de todos os batizados é transmitida pelo Evangelho, pelos ritos cristãos de iniciação e pelas orações eucarísticas, e ela continua a existir na profundeza da consciëncia eclesial – por vezes, infelizmente, oculta como o talento escondido na terra ou o tesouro no campo das parábolas de Jesus. De tempos a outros vozes proféticas se levantam para despertar a Igreja de seu torpor. Um exemplo bem conhecido é aquele de Serafim de Sarov na Rússia do século XIX, que chamava cada um, clero ou leigo, homens e mulheres, a “adquirir o Espírito Santo”, e ele foi a inspiração mística de todos aqueles e aquelas que em seguida irão se tornar os confessores e os mártires da fé sob a perseguição comunista.

Tal sentido do ministério e de uma responsabilidade comuns partilhados por todos se manifestou de outra forma durante a provação da grande diáspora ortodoxa do século XX. O fato de viver a diáspora significou para milhões de ortodoxos um encontro traumatizante e ao mesmo tempo estimulante com o mundo ocidental – e para alguns cristãos ocidentais foi a ocasião de encontrar a teologia e a espiritualidade dos cristãos do oriente. Tal situação produz hoje – não sem alguma resistência – um retorno criativo às fontes de nossa eclesiologia e da teologia do ministério que é seu corolário. Podemos citar muitas obras teológicas ortodoxas relacionadas a tal tema – queria fazer referência a uma pequena obra somente, por vezes sintética e poética, clara e profunda, escrita por um guia espiritual e grande teólogo também: o padre Lev Gillet (1).

A fonte de todo ministério, afirma Lev Gillet, se encontra em Jesus Cristo, o Qual por vezes foi o servidor par excellence, humilhando-Se Ele-próprio e tornando-Se um ser humano (Fp. 2, 6-11; cf. Jo. 13, 3-16),  e também o único sacerdote no sentido pleno do termo, como o proclama com vigor a epístola aos Hebreus. É Ele que é “Aquele que oferece e que Se oferece”, segundo as palavras da Liturgia de São João Crisóstomo. Oferecido a Deus, “uma vez por todas” (Hb. 10, 10), o sacrifício de Jesus fez d´Ele “único mediador entre Deus e os homens” (Tm. 2, 5). Jesus quis todavia que as pessoas, os seres humanos, participem à Sua obra de redenção e de santificação. Ele confia tarefas a Seus discípulos, Ele envia os apóstolos. Eis o fundamento do sacerdócio comum de todos os batizados. As palavras do apóstolo Pedro se dirigem a todos os cristãos: “Vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo. Pelo que também na Escritura encontramos: Eis que ponho em Sião a pedra principal da esquina, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido. E assim para vós, os que credes, é preciosa, mas, para os rebeldes, a pedra que os edificadores reprovaram, essa foi a principal da esquina; e uma pedra de tropeço e rocha de escândalo, para aqueles que tropeçam na palavra, sendo desobedientes; para o que também foram destinados. Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (I Pe. 2, 5-9). O que significa aqui, num sentido muito real, é o sacerdócio universal, a realização da vocação da humanidade segundo o Gênesis – um apelo escurecido pelo pecado, mas jamais abolido, e que recebe sua realização no Homem-Deus; uma vocação à qual, em  comunhão com Jesus Cristo pelo Espírito Santo, todos os batizados participam na Igreja, o seio da nova humanidade.

Eis o sentido da crismação (crisma) ou da confirmação dos novos batizados que segue imediatamente seu batismo – a unção – ou o compromisso com o sêlo do Espírito Santo – braços e pernas, e particularmente órgãos dos sentidos, pelos quais a pessoa humana entra em relação com as outras pessoas e com o mundo animado e inanimado; consagração da pessoa inteira, chamada a se oferecer, ela-própria e oferecer ao Criador toda a criação que é confiada aos seus sentidos (Gn. 1:28). “Nós Te oferecemos o que é Teu, em tudo e por todos.” - oração da fé ortodoxa durante o Ofertório da Liturgia Eucarística.

Neste momento, a obra divina atinge seu objetivo e seu apogeu. Neste momento oramos por toda criação, consagramos todos os seres humanos e o mundo inteiro a Deus, realizamos o ofício do sacerdote, de sorte que nosso sacerdócio pode ser o sacerdócio ministerial delegado pela Igreja, ou ainda o sacerdócio real que as Escrituras atribuem a todos àqueles que crêem. (2)

Tal sacerdócio se exprime e recebe seu sentido de orações e ritos litúrgicos, mas todos os batizados juntos são chamados a viver plenamente no mundo, qualquer que seja a forma que seu serviço se encarne.

Todavia, algumas raras pessoas na Igreja são chamadas para serem os “ministros” dos mistérios do Cristo num sentido particular. A missão dos bispos e dos presbíteros na sucessão apostólica consiste em ser testemunhas da fé apostólica, pastores e guias das Igrejas Locais das quais são responsáveis e das quais, como tais, presidem o culto realizado pela comunidade. Enquanto dispensadores da palavra e dos sacramentos, eles são (ainda segundo as palavras de Lev Gillet) “aqueles que intercedem e que são os instrumentos externos e visíveis desta graça sacerdotal e invisível da qual toda Igreja, clérigos e leigos, são os depositários”. Segundo o ensinamento ortodoxo, tal sacerdócio não é ontologicamente diferente do sacerdócio de todos os fiéis. “Ele não é de outra essência”, mas são responsáveis por uma função particular, realização daquilo pelo que para a Igreja ora, confiante nas promessas do Senhor, a saber que eles recebem os dons do Espírito.

Eis o sentido das bençãos que chamamos “ordenações”, conferidas àqueles que a Igreja chamou para os ministérios de diácono, presbítero ou bispo. A ordenação não significa uma promoção a um nível mais elevado na hierarquia onde o sacerdócio real ou as soi-disant ordens “menores” são os níveis inferiores. Antes o sinal dos dons do Espírito concedidos pelo Senhor – sob a condição de que estejam abertos à Sua graça – aos servidores a quem Ele dá a missão de nutrir e fortificar o chamado de todos ao sacerdócio comum (3), daqueles que eles servem em Seu Nome. Tal teologia do saceródio e dos ministérios é o contexto no qual o problema da possibilidade da acessão das mulheres ao sacerdócio ministerial se coloca hoje na Igreja Ortodoxa – de maneira ainda muito tímida. Segundo a opinião do bispo Kallistos Ware – um dos melhores teólogos ortodoxos contemporâneos – isto permanece uma “questão aberta” (4).

Extraído de Kyriaki K. FitzGerald,
Orthodox Women Speak: Discerning the “Signs of the Times”, 
WCC Publications, Genebra
Holy Cross Orthodox Publications. Brookline, MA, USA, 1999

NOTAS
1. A maioria das obras de Lev Gillet são publicadas sob o pseudônimo: Um monge da Igreja do Oriente. A obra utilizada aqui é a Offrande Liturgique, Paris, Cerf, 1988, que compreende dois estudos publicados primeiramente em Beiruth pelo movimento da juventude ortodoxa do Patriarcado de Antioquia: “Notas obre a Liturgia” e “Sê meu sacerdote”. Dentre outros estudos, mencionemos Nicolas Afanasiev, L˜Eglise du Saint-Esprit, paris, Cerf, 1975 e Ioannis Zizioulas, L’être ecclésial, Genebra, Labor et Fides, 1981.
2. L’Offrande Liturgique, p. 46.
3. Gostaria especialmente de fazer referência aqui das intuições de Alexandre Boukharev (1822-71), um grande teólogo russo que não foi compreendido em seu tempo. Cf Élisabeth Behr-Sigel, Alexandre Boukharev, paris, Beauchesne, 1977.
4. Cf. Kallistos Ware, “Man, Woman and the Priesthood of Christ”, in eter Moore ed., Man, Woman and Priesthood, London, SPCK, 1979; uma nova ediçãoaparece junto ao St. Vladimir’s Seminary Press. Ver também Élisabeth Behr-Sigel, Le Ministère de la femme dans l’ Eglise, Paris, Cerf, 1987; “La Consultation de Rhodes sur la place de la femme dans l’ Eglise”, Contacts, 1989; et “Femmes et sacerdoce”, Contacts, 1990.

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