Problemas da Ortodoxia na América - parte 1 (a Questão Canônica)


SCHMEMANN Protopresbítero Alexander
tradução de monja Rebeca (Pereira)


O Problema Canônico
Este artigo, escrito há algumas décadas, é considerado por muitos eruditos ortodoxos e pastores da Igreja como uma brilhante declaração do conceito de “canonicidade”. Sendo também para maioria, uma análise muito perspicaz e correta do quadro ortodoxo americano. Este artigo deve ser lido com muita atenção por todos os cristãos ortodoxos sérios na América.

(I) Uma situação não-canônica

Termo algum é tão usado – e mal utilizado – dentre os ortodoxos na América do que o termo canônico. Pode-se ouvir intermináveis discussões acerca de “canonicidade” ou “não-canonicidade” deste ou daquele bispo, jurisdição, padre, paróquia. Não é em si uma indicação de que algo está errado ou, pelo menos, questionável pelo ponto de vista na América, que lá exista um problema canônico que requer uma análise geral bem como sua solução? Infelizmente a existência de tal problema é geralmente admitida. Cada um clama pela plenitude da canonicidade de sua própria posição e, em nome disto, condena e denuncia como não-canônico o estatuto eclesiástico de outros. É de se espantar com o baixo nível e cinismo dessas lutas "canônicas", nas quais qualquer insinuação, qualquer distorção é permitida, desde que se  prejudique o "inimigo". A preocupação aqui não é pela verdade, mas por vitórias na forma de paróquias, bispos, sacerdotes "mudando" as jurisdições e juntando-se à jurisdição "canônica". Não importa que o mesmo bispo ou padre estivesse condenando ontem o que hoje ele elogia como canônico, que as reais motivações por trás de todas essas transferências raramente não têm nada a ver com convicções canônicas; o que importa é a vitória. Vivemos numa atmosfera envenenada de anátemas e excomunhões, curtas-causas e litigações, dúbias consagrações de dúbios bispos, ódio, calúnias, mentiras! Mas pensamos sobre o dano moral irreparável que tudo isso inflige ao nosso povo? Como eles podem respeitar a hierarquia e suas decisões? Que significado pode ter o próprio conceito de canonicidade para eles? Não estamos encorajando-os a considerar todas as normas, todos os regulamentos, todas as regras como puramente relativas?  Às vezes, nos perguntamos se nossos bispos percebem o escândalo dessa situação, se pensam alguma vez no cinismo que tudo isso provoca e alimenta nos corações dos ortodoxos. Três jurisdições russas, duas sérvias, duas romenas, duas albanesas, duas búlgaras ... Uma divisão entre os sírios ... A animosidade entre os russos e os carpatho-russos ... O problema ucraniano! E tudo isso numa época em que a Ortodoxia na América está amadurecendo, quando existem possibilidades verdadeiramente maravilhosas para seu crescimento, expansão, progresso criativo. Ensinamos nossos filhos a serem "orgulhosos" pela Ortodoxia, constantemente nos parabenizamos por todos os tipos de eventos e realizações históricas, nossas publicações na igreja destilam um triunfalismo e otimismo quase insuportáveis, contudo, se fôssemos fiéis ao espírito de nossa fé, deveríamos nos cobrir  com “pano de saco e cinzas” em guisa de arrependimento, devemos clamar dia e noite sobre o triste e trágico estado de nossa Igreja. Se a "canonicidade" não é nada mais do que uma justiça farisaica e legalista, se tem algo a ver com o espírito de Cristo e a tradição do Seu Corpo, a Igreja, devemos proclamar abertamente que a situação em que todos vivemos é totalmente não-canônica, independentemente de todas as justificativas e sanções que cada um encontra para sua "posição". Pois nada pode justificar o simples fato: nossa Igreja está dividida. Para ter certeza, sempre houve divisões e conflitos entre os cristãos. Mas pela primeira vez na história a divisão pertence à própria estrutura da Igreja, pela primeira vez a canonicidade parece estranhamente desconectada de seu "conteúdo" e propósito fundamentais - assegurar, expressar, defender e cumprir a Igreja como Unidade Divinamente dada, pois pela primeira vez, em outros termos, parece encontrar-se uma multiplicidade de "jurisdições". Verdadeiramente devemos acordar e ficar horrorizados com esta situação. Precisamos encontrar em nós mesmos a coragem para enfrentar  e re-pensar de acordo com a genuína doutrina e tradição ortodoxa, não importando o quanto isso custará aos nossos pequenos gostos e desgostos humanos. Pois a menos que nós, primeiro, admitamos abertamente a existência do problema canônico e, segundo, coloquemos todos os nossos pensamentos e energias em solucionarmos, a decadência da Ortodoxia irá começar - apesar das igrejas de milhões de dólares e outras magníficas "facilidades" das quais somos tão justamente orgulhosos. “Porque já é tempo que comece o julgamento pela casa de Deus; e se começa por nós, qual será o fim daqueles que desobedecem ao Evangelho de Deus?” (1 Pe 4:17).

(II) Falsas ideias sobre Canonicidade

Devemos começar com a clarificação da noção aparentemente simples de canonicidade. Digo “aparentemente simples” por ser verdadeiramente assaz simples para dar uma definição formal: “canônico é aquilo que cumpre com os cânones da Igreja.”  No entanto, é  muito mais difícil entender o que é essa "conformidade" e como alcançá-la. E nada ilustra melhor essa dificuldade do que certas suposições nas quais toda a controvérsia canônica na América parece estar fundamentada e que são, na verdade, uma distorção muito séria da tradição canônica ortodoxa.

Há aqueles, por exemplo, que resolvem o complexo e trágico problema canônico da Ortodoxia na América por meio de uma regra simples, que para eles parece evidente: para ser "canônico" é preciso estar sob algum patriarca, ou, em geral, sob alguma igreja autocéfala estabelecida no mundo antigo. A canonicidade é assim reduzida à subordinação, que é declarada como constituindo o princípio fundamental da organização da igreja. Implica-se aqui a ideia de que um "alto poder eclesiástico" (Patriarca, Sínodo, etc.) é em si mesmo e por si mesmo a fonte da canonicidade: o que quer que decida é ipso facto canônico e o critério da canonicidade. Na tradição ortodoxa genuína, porém, o poder eclesiástico está ele próprio sob os cânones e suas decisões são válidas e obrigatórias apenas na medida em que cumprem os cânones. Em outros termos, não é a decisão de um patriarca ou seu sínodo que cria e garante "canonicidade", mas, ao contrário, é a canonicidade da decisão que lhe confere sua verdadeira autoridade e poder.  A verdade, e não o poder, é o critério, e os cânones, não diferentes dos dogmas, expressam a verdade da Igreja. E assim como nenhum poder, nenhuma autoridade pode transformar a heresia em ortodoxia e tornar branco o que é negro, nenhum poder pode tornar canônica uma situação que não é canônica. Na altura em que todos os patriarcas concordaram com o Patriarca de Constantinopla que o monotelismo era  uma doutrina ortodoxa, São Máximo, o Confessor, recusou-se a aceitar tal argumento como critério decisivo da verdade. A Igreja finalmente canonizou São Máximo e condenou os Patriarcas. Da mesma forma, se amanhã todos os Patriarcas concordarem e proclamarem em solenes "tomos" que a melhor solução para a Ortodoxia na América é permanecer dividida em quatorze jurisdições, esta decisão não tornará nossa situação canônica e isso, pela simples razão de não cumprir a tradição canônica ou a verdade da igreja. Para o propósito e a função da Hierarquia é precisamente manter pura e não distorcida a tradição em sua plenitude, e se e quando ela sanciona ou mesmo tolera qualquer coisa contrária à verdade da igreja, ela se coloca sob a condenação dos cânones. [1] E é de fato irônico que na América o subordinacionismo canônico, exaltado por tantos como a única fonte e garantia de "canonicidade", esteja sendo usado para justificar a situação mais não-canônica que se possa imaginar; a jurisdição simultânea de vários bispos no mesmo território, que é uma traição da letra e do espírito de toda a tradição canônica. Pois esta situação destrói a "nota" fundamental da Igreja: a unidade hierárquica e estrutural como fundamento e expressão da unidade espiritual, da Igreja como "unidade de fé e amor". Se existe um princípio canônico claro e universal, é certamente o da unidade jurisdicional [2] e, portanto, se uma "redução" peculiar da canonicidade leva à destruição de fato desse princípio, pode-se aplicar a ele as palavras de o Evangelho: “Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos?” (Mt. 7,16). O "subordinacionismo canônico" é a melhor indicação de quão profundamente "ocidentalizados" nos tornamos em nosso pensamento canônico. A canonicidade foi identificada não com a verdade, mas com a "segurança". E nada menos do que um reavivamento canônico real pode nos trazer de volta à certeza gloriosa de que na Ortodoxia não há substituto para a Verdade.

 "subordinacionismo canônico", destrutor da unidade da Igreja,  leva necessariamente à destruição da continuidade da Igreja. Não há necessidade de provar aqui que a continuidade na fé, doutrina e vida constitui a própria base da eclesiologia ortodoxa e que o princípio-mor dessa continuidade é a sucessão apostólica do Episcopado; através dela, cada igreja manifesta e mantém sua unidade orgânica e identidade com a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, a catolicidade de sua vida e fé. Mas, enquanto na tradição ortodoxa genuína, o "sujeito" da continuidade é a Igreja, isto é, a real continuidade de uma comunidade viva e concreta com toda a tradição e ordem da Igreja, continuidade da qual a sucessão do Episcopado é a testemunha e a portador, aqui na teoria do "subordinacionismo canônico" a realidade da igreja é reduzida ao princípio formal de "jurisdição", isto é, subordinação a um poder eclesiástico central. Mas então o significado da sucessão apostólica é profundamente alterado, como também o do Bispo e sua função dentro da Igreja. Na tradição original, um bispo através de sua consagração por outros bispos, torna-se o "sucessor" não para seus consagradores, mas, em primeiro lugar, para a continuidade ininterrupta de sua própria Igreja. [3]

A "Igreja está no Bispo" porque o "Bispo está na Igreja", na "unidade orgânica com um corpo particular de pessoas da igreja". [4] No sistema de subordinação canônica, no entanto, o Bispo torna-se um simples representante de uma jurisdição superior, importante não em si mesmo, não como o portador carismático e guardião da continuidade e catolicidade da sua Igreja, mas como meio de subordinação desta Igreja a uma "jurisdição".  É difícil imaginar uma distorção mais séria e, de fato, a destruição da concepção ortodoxa de continuidade e sucessão apostólica. Pois a Igreja não pode ser reduzida a "jurisdição". Ela é um organismo vivo e sua continuidade é precisamente a da vida. A função do episcopado e do "poder" em geral é preservar, defender e expressar essa continuidade e plenitude da vida, mas é uma função dentro e não acima da Igreja. O ministério do poder não cria a igreja, mas é criado por Deus dentro da Igreja, que é ontologicamente anterior a todas as funções, carismas e ministérios. [5] E a "jurisdição" quando está divorciada da continuidade real da Igreja pode tornar-se e, de fato, muitas vezes se torna um princípio de descontinuidade e cisma ...

* Uma triste, mas típica ilustração disso é a dolorosa história dos conflitos eclesiásticos russos na América. A Ortodoxia foi implantada no Alasca no século XVIII por missionários russos. Desde então, a Igreja cresceu organicamente: de uma missão para uma diocese e depois para um grupo de dioceses ou uma igreja local. O vínculo jurisdicional normal entre a Igreja Americana e o Patriarcado de Moscou foi quebrado de fato pelos eventos trágicos da Revolução Russa. Não houve cisma, nem briga, nem conflito.
O bispo nomeado de Moscou foi para a Rússia e não retornou. Privada de apoio material da Igreja Matriz, envenenada pela propaganda revolucionária, a Igreja na América estava em um grande perigo espiritual. Nesta situação trágica [6] a decisão do Sobor de Detroit em 1924 de proclamar a autonomia temporária não foi apenas plenamente justificada, foi de fato um ato de continuidade real, ou seja, da fidelidade da Igreja a seu crescimento orgânico. Além disso, foi um ato de toda a Igreja: bispo, clero e leigos; e sua motivação era profunda e exclusivamente eclesiástica: assegurar, sob novas circunstâncias, a continuidade da vida, fé e ordem. [8] Mas o Patriarcado de Moscou condenou a Igreja Americana como "cismática", e em 1933 estabeleceu aqui sua própria "jurisdição" na forma do Exarcado. [9]

Temos aqui um confronto claro entre as duas "lógicas canônicas". Por um lado, há as lógicas da continuidade orgânica em uma Igreja que se conhece como uma realidade, um corpo, uma continuidade viva e que, para o bem dessa continuidade e crescimento, ousa tomar as medidas mais adequadas a esse propósito. E há, por outro lado, as lógicas legalistas em que toda a vida da Igreja não é senão um sistema de subordinação jurisdicional. A criação do Exarcado Patriarcal é, desse ponto de vista, um fenômeno muito interessante. Implica que uma Igreja pode ser criada, por assim dizer, ex nihilo, pelo simples fato da chegada aos EUA do Bispo Benjamin. Implica também que, no pensamento moscovita, a continuidade da Igreja na América não reside em seu longo e orgânico desenvolvimento, mas exclusivamente em sua dependência jurisdicional de Moscou ... E é realmente surpreendente quantas pessoas, mesmo aquelas que alegam "compreender" e "justificar" a Metropolia, mas principalmente por razões não eclesiásticas, não conseguem perceber que pelos padrões de uma tradição canônica e eclesiástica genuinamente ortodoxa, o único verdadeiro cisma foi originado pela declaração do Metropolita Sergiy de Moscou, que o arcebispo Benjamin havia "organizado em Nova York um Conselho Diocesano e que nossa diocese norte-americana começou a existir oficialmente". Este ato quebrou a continuidade real da Igreja Americana, introduziu a divisão entre os ortodoxos, enfraqueceu a disciplina que foi restaurada com tanta dor depois de Detroit, abriu a porta para intermináveis ​​controvérsias e acusações e, em geral, contribuiu para o caos canônico em que vivemos hoje. E se a sucessão apostólica foi estabelecida em prol da unidade e do sobornost, e nunca deve se tornar o veículo de exclusividade e divisão, se, em outros termos, um cisma é um ato de divisão, uma ruptura na continuidade real da Igreja, foi o estabelecimento do Exarcado que provocou um cisma e uma ruptura de canonicidade.

Nós mencionamos a tragédia russa porque, à medida que o tempo passa, torna-se cada vez mais obviamente um tipo de "padrão" para toda a tragédia canônica da Ortodoxia Americana. O que aconteceu com os russos está acontecendo mutatis mutandis com os outros, os sérvios, os romenos, os búlgaros, os sírios, e pela mesma razão fundamental: a crescente discrepância entre a situação real, a continuidade real, as reais necessidades da Ortodoxia aqui. e as várias "situações" em Bucareste ou Damasco, Istambul ou Moscou. Se a dependência jurisdicional das igrejas americanas nesses centros no início do período formativo da Ortodoxia era uma forma evidente de continuidade, tornou-se hoje, paradoxalmente, a causa da descontinuidade e da divisão. É um fato significativo que, com algumas poucas exceções, os cismas e conflitos que envenenam nossa vida aqui e obstruem todo progresso real, estão enraizados não na situação americana em si, mas precisamente nesta "dependência" formal em centros eclesiásticos localizados em milhares de pessoas. de quilômetros de distância da América e radicalmente alienado das necessidades reais da Igreja na América. Um bispo virtualmente sem paróquias é reconhecido como "canônico" porque ele é "reconhecido" pelo seu patriarca, mas um bispo da mesma Igreja com uma diocese florescente e com raízes orgânicas na continuidade real da Igreja aqui é declarado "não-canônico", "por falta de tal reconhecimento. Uma divisão desnecessária e cruel em uma arquidiocese relativamente pequena é declarada "canônica", porque dez bispos do Oriente Médio decidiram que sim. Um padre com problemas em sua própria diocese é sempre bem-vindo em alguma outra jurisdição... Somos constantemente informados de que algo é "canônico", porque é "reconhecido" como canônico por tal ou tal Patriarca ou Sínodo. Mas, mais uma vez, no ensino ortodoxo canônico é o que está em conformidade com os cânones e os cânones expressam a verdade da igreja. Devemos rejeitar abertamente a teoria da "romanização" de que algo é verdade porque alguma autoridade infalível decretou que é verdade. Na Igreja Ortodoxa, a própria verdade é a autoridade e critério supremo. Por um tempo, o Patriarca de Constantinopla "reconheceu" como ortodoxa e canônica a chamada "Igreja Viva" na Rússia. Isso não o tornou nem ortodoxo nem canônico.

Patriarca algum, nem Sínodo algum- seja em Moscou, Belgrado ou em qualquer outro lugar - tem o infalível carisma para entender melhor as necessidades e a verdade da situação americana do que os ortodoxos que constituem a Igreja aqui. De fato, é a falta de genuíno interesse pastoral nas reais necessidades da Igreja na América, são seus "reconhecimentos" e "excomunhões" que fizeram da Igreja Ortodoxa um caos lamentável. Obviamente, enquanto acreditarmos que o Espírito Santo atua na América somente via Damasco ou Sofia, Bucareste, ou Moscou, enquanto nossos Bispos, esquecendo o conteúdo real da doutrina da sucessão apostólica que os torna os representantes de Deus e não dos Patriarcas, pensam em si mesmos como guardiões de interesses que nada têm a ver com os interesses da Ortodoxia na América, em outros termos, à medida que reduzimos a Igreja, sua vida, sua unidade, sua continuidade à subordinação cega e legalista, o caos canônico continuará, levando consigo a deterioração fatal da Ortodoxia.

Finalmente, tudo isso leva a (e também em parte provém da) redução prejudicial e não-ortodoxa da canonicidade a um princípio quase abstrato de validade. Quando um homem foi consagrado bispo por pelo menos dois outros bispos, ele é considerado um bispo "válido", independentemente do conteúdo eclesiástico e eclesiológico de sua consagração. Mas a tradição ortodoxa nunca isolou a validade em um "princípio em si", isto é, desconectado da verdade, autenticidade e, em geral, de toda a fé e ordem da Igreja. Não seria difícil mostrar que a tradição canônica, ao lidar com ordens e sacramentos sagrados, sempre enfatiza que eles são válidos porque são atos de, e dentro da Igreja, o que significa que é sua autenticidade como atos da Igreja que torná-los válidos e não vice-versa. Considerar a validade como um princípio autocontido leva a uma compreensão mágica da Igreja e a uma perigosa distorção da eclesiologia. No entanto, nos Estados Unidos, sob o impacto do caos multi-jurisdicional, essa ideia de validade aparece cada vez mais como o único critério. Lá cresce em torno de nós uma indiferença peculiar à autenticidade, a considerações morais elementares. Um bispo, um padre, um leigo pode ser acusado de todo tipo de pecado moral e canônico: no dia em que ele "muda" para as jurisdições "canônicas", todas essas acusações se tornam irrelevantes; ele é "válido" e pode-se confiar a ele a salvação das almas humanas! Esquecemos completamente que todas as "notae" da Igreja não são apenas igualmente importantes, mas também interdependentes, e o que não é santo? direito, moral, justo, canônico, não pode ser "apostólico"? Em nossa opinião, nada prejudicou mais os fundamentos espirituais e morais da vida da Igreja do que a ideia realmente imoral de que um homem, um ato, uma situação são "válidos" apenas em função de uma "validade em si" puramente formal. É essa doutrina imoral que envenena a Igreja, faz com que paróquias e indivíduos pensem em qualquer mudança jurisdicional como justificada, desde que "se submetam a um bispo válido" e tornem a Igreja cínica e indiferente às considerações de verdade e moral.

(III)  O significado de canonicidade

O caos canônico na América não é um fenômeno especificamente "americano". Pelo contrário, a Ortodoxia aqui é vítima de uma longa doença, na verdade, multissecular. Era uma doença latente enquanto a Igreja vivia na antiga situação tradicional caracterizada principalmente por uma unidade orgânica do Estado, o fator étnico e a organização eclesiástica. Até muito recentemente, na verdade, até o surgimento da massiva diáspora ortodoxa, a estabilidade e a ordem eclesiásticas eram preservadas não tanto pela "consciência" canônica, mas pelos regulamentos e controle estatais. Ironicamente, não fazia muita diferença se o Estado era ortodoxo (o Império Russo, o Reino da Grécia), Católico Romano (Austro-Húngaro) ou Muçulmano (o Império Otomano). Os membros da Igreja poderiam ser perseguidos em Estados não-ortodoxos, mas a organização da Igreja - e este é o cerne da questão - foi sancionada pelo Estado e não poderia ser alterada sem essa sanção. Esta situação foi, naturalmente, o resultado da "sinfonia bizantina" inicial entre Igreja e Estado, mas após a queda de Bizâncio foi progressivamente privada daquela interdependência mútua de Igreja e Estado que estava no coração da ideologia teocrática bizantina. (10) O que é importante para nós aqui e o que constitui a "doença" mencionada acima é que essa mistura orgânica de regulamentações estatais, solidariedade étnica e organização da Igreja levou pouco a pouco ao divórcio da consciência canônica de seu contexto dogmático e espiritual. A tradição canônica, entendida a princípio como uma parte orgânica da tradição dogmática, como a aplicação desta última à vida empírica da Igreja, tornou-se Direito Canônico: um sistema de regras e regulamentos, juridico, e não primariamente doutrinal e espiritual em sua natureza, e interpretado como tal dentro de categorias alheias à essência espiritual da Igreja. Assim como um advogado é aquele que pode encontrar todos os possíveis precedentes e argumentos que favoreçam seu "caso", um canonista, nesse sistema de pensamento, é aquele que, na enorme massa de textos canônicos, pode encontrar aquele que justifica seu "caso", mesmo que este último contradiga o espírito da Igreja. E quando esse "texto" é encontrado, a "canonicidade" é estabelecida. Surgiu, em outros termos, um divórcio entre a Igreja como essência espiritual, sacramental e a Igreja como organização, de modo que esta última, de fato, deixou de ser considerada como a expressão da primeira, plenamente dependente dela. Se hoje na América tantos dos nossos leigos estão sinceramente convencidos de que a organização paroquial é um problema exclusivamente jurídico ou "material" e deve ser tratado à parte do "espiritual", a raiz dessa convicção não está apenas no ethos especificamente americano. , mas também na secularização progressiva do próprio direito canônico. E, no entanto, a questão toda é que os cânones não são meras leis, mas leis cuja autoridade está enraizada precisamente na essência espiritual da Igreja. Cânones não constituem ou criam a Igreja, sua função é defender, esclarecer e regular a vida da Igreja, para fazê-la cumprir a essência da Igreja. Isso significa que, para serem corretamente compreendidos, interpretados e aplicados, os textos canônicos devem ser sempre referidos àquela verdade da Igreja, e sobre ela, que eles expressam às vezes para uma situação muito particular e que não é necessariamente explícita no texto canônico em si.

Se tomarmos a área canônica que nos interessa mais particularmente neste ensaio, o de organização eclesiástica e poder episcopal, é evidente que a realidade ou verdade básica a que todos os cânones lidam com bispos, sua consagração e sua jurisdição apontam e referem, é a realidade da unidade, como a própria essência da Igreja. A Igreja é unidade dos homens com Deus em Cristo e unidade dos homens uns com os outros em Cristo. Desta nova unidade, divinamente dada e divina, a Igreja é o dom, a manifestação, o crescimento e a realização. E, portanto, tudo em sua organização, ordem e vida está de alguma forma relacionada à unidade, e deve ser entendido, avaliado e, se necessário, julgado por ela. A essência dogmática ou espiritual da Igreja como unidade é, portanto, o critério para a compreensão adequada dos cânones sobre a organização da Igreja e também para sua correta aplicação. Se os cânones prescrevem que um bispo deve ser consagrado por todos os bispos da província (cf. Cânone Apostólico 1, 1 Oecum, Cânon 4) e somente em caso de "alguma razão especial ou devido à distância" por dois ou três, o significado do cânon obviamente não é que dois ou três bispos possam "fazer" outro bispo, mas que a consagração de um bispo é o próprio sacramento da Igreja como unidade e unidade. (11) Reduzir este cânon a um princípio formal de que deve haver pelo menos dois bispos para uma consagração episcopal "válida" é simplesmente sem sentido. O cânon tanto revela como salvaguarda uma verdade essencial sobre a Igreja e sua aplicação adequada é possível, portanto, somente dentro do contexto completo dessa verdade. E somente este contexto explica por que os cânones que aparentemente são anacrônicos e não têm nada a ver com o nosso tempo e situações não são considerados obsoletos, mas continuam sendo parte integrante da Tradição. Certamente, o cisma melitiano que dividiu o Egito no início do século IV não tem grande importância para nós. No entanto, os cânones do Primeiro Concílio Ecumênico, que definiram as normas para sua solução, guardam todo o seu significado precisamente porque revelam a verdade da Igreja à luz da qual e para a preservação da qual esse cisma foi resolvido. Tudo isso significa que a busca da canonicidade consiste não num acúmulo de "textos", mas no esforço de, primeiro, entender o significado eclesiológico de um dado texto e, depois, relacioná-lo a uma situação particular e concreta.

A necessidade de tal esforço é especialmente óbvia aqui na América. A situação eclesiástica americana é inédita em mais de um aspecto. Tempo e energia suficientes foram gastos em tentativas estéreis simplesmente para "reduzi-lo" a algum padrão do passado, isto é, para ignorar o desafio real que ele apresenta à consciência canônica da Igreja.

(IV) Pluralismo Nacional e Unidade Canonica

A situação sem precedentes da Ortodoxia Americana é que a Igreja aqui, diferente de todas as outras partes do mundo ortodoxo, é multinacional em suas origens. Desde a era bizantina, a Ortodoxia sempre foi trazida e aceita por nações inteiras. O único padrão familiar do passado, portanto, não é a criação de meras igrejas locais, mas uma total integração e encarnação da Ortodoxia nas culturas nacionais; para que essas culturas não possam ser separadas da Ortodoxia, mas, em sua profundidade, são expressões genuínas da Ortodoxia. Essa unidade orgânica do nacional e do religioso não é um acidente histórico, muito menos um defeito da ortodoxia. Em sua expressão positiva, é o fruto do conceito e da experiência ortodoxa da Igreja como abrangendo toda a vida. A catolicidade significa para um ortodoxo mais que uma universalidade geográfica; é, acima de tudo, a totalidade, a totalidade da vida como pertencente a Cristo e santificada pela Igreja. A esse respeito, a situação na América é radicalmente diferente de toda a experiência histórica da Ortodoxia. Não só a Igreja Ortodoxa foi trazida para cá por representantes de várias nações ortodoxas, mas foi trazida precisamente como a continuação da sua existência nacional. Daí o problema da unidade canônica ou eclesiológica, que, como vimos, é uma exigência evidente da própria verdade da Igreja, encontra aqui dificuldades que não podem ser simplesmente reduzidas às soluções do passado. E, no entanto, é precisamente isso que acontece com demasiada frequência.

Por um lado, há aqueles que acreditam que o antigo padrão de unidade nacional e religiosa pode ser simplesmente aplicado à América. A Igreja é grega na Grécia, russa na Rússia, portanto deve ser americana na América - tal é o raciocínio deles. Nós não somos mais russos ou gregos, vamos traduzir serviços em inglês, eliminar todo o "nacionalismo" da Igreja e ser um. Por mais lógico que pareça, essa solução está profundamente errada e, de fato, impossível. Pois o que, em seu alegre e superficial "americanismo", os partidários dessa visão parecem ignorar completamente é que o relacionamento entre a Ortodoxia e a Rússia, ou Ortodoxia e Grécia, é fundamentalmente diferente, se não oposto, do relacionamento entre a Ortodoxia e a América. Não existe e não pode haver uma religião da América no sentido em que a Ortodoxia é a religião da Grécia ou da Rússia e isso, apesar de todas as traições e apostasias possíveis e reais. E por essa razão, a Ortodoxia não pode ser americana no sentido em que certamente é grega, russa ou sérvia. Enquanto lá, no velho mundo, a Ortodoxia é coextensiva com a cultura nacional e, até certo ponto, com a cultura nacional (de modo que a única alternativa é a fuga: para uma cultura "cosmopolita", a saber, "ocidental"). A América, o pluralismo religioso e, portanto, uma "neutralidade" religiosa básica, pertence à própria essência da cultura e impede a religião de uma "integração" total na cultura. Os americanos podem ser mais pessoas religiosas do que russos ou sérvios, a religião na América pode ter privilégios, prestígio e status que não tinha nos países ortodoxos "orgânicos", tudo isso não altera a natureza fundamentalmente secular da cultura americana contemporânea; e, no entanto, é precisamente essa dicotomia de cultura e religião que a Ortodoxia nunca conheceu ou experimentou e que é totalmente estranha à Ortodoxia. Pela primeira vez em toda a sua história, a Ortodoxia deve viver dentro de uma cultura secular. Isso apresenta enormes problemas espirituais com os quais espero lidar em um artigo especial. O que é importante para nós aqui, no entanto, é que o conceito de "americanização" e de Ortodoxia está longe de ser simples. É um grande erro pensar que todos os problemas são resolvidos pelo uso do inglês nos serviços, por mais essencial que seja. Para o problema real (e provavelmente só começaremos a perceber e a enfrentar quando "tudo é traduzido para o inglês) é o da cultura, do" modo de vida ". Pertence à própria essência da Ortodoxia não apenas "aceitar" uma cultura, mas permear e transformá-la, ou, em outros termos, considerá-la parte integrante e objeto da visão ortodoxa da vida. Privada dessa inter-relação viva com a cultura, desta reivindicação ao conjunto da vida, a Ortodoxia, apesar de toda a retidão formal do dogma e da Liturgia, trai e perde algo absolutamente essencial. E isso explica o apego instintivo de tantos ortodoxos, até mesmo americanos nascidos, às formas "nacionais" da Ortodoxia, sua resistência, ainda que de mente estreita e "nacionalista", a um divórcio completo entre a Ortodoxia e suas várias expressões nacionais. Nessas formas e expressões, a Ortodoxia preserva algo de sua totalidade existencial, de sua ligação com a vida em sua totalidade, e não se reduz a um "rito", um número claramente delineado de afirmações credenciais e um conjunto de "regras mínimas". Não se pode, por meio de uma operação cirúrgica chamada "americanização", destilar uma "Ortodoxia em si" pura, sem desconectá-la de sua carne e sangue, tornando-a uma forma sem vida. Não pode haver dúvida, portanto, que em vista de tudo isso, uma continuidade viva com as tradições nacionais permanecerá por muito tempo não apenas um compromisso "destinado a satisfazer os" veteranos ", mas uma condição essencial para a própria vida. da Igreja Ortodoxa. E qualquer tentativa de construir a unidade da Ortodoxia aqui, opondo o "americano" às conotações e termos nacionais tradicionais, não conduzirá nem a uma unidade real nem a uma Ortodoxia real.

Mas igualmente errados são aqueles que desta interdependência do nacional e do eclesiástico dentro da Ortodoxia chegam à conclusão de que, portanto, a unidade eclesiástica, isto é, "a unidade jurisdicional da Igreja Ortodoxa na América é impossível e nem deveria ser buscada. Essa visão implica uma idéia muito estreita e obviamente distorcida da Igreja como uma simples função de identidade nacional, valores e autopreservação. "Nacional" torna-se aqui "nacionalista" e a Igreja - um instrumento de nacionalismo. É preciso confessar que se cansa da exortação frequente de "manter a fé de nossos pais". Pelo mesmo raciocínio, um homem de ascendência protestante deveria permanecer protestante e um judeu judeu, independentemente de suas convicções religiosas. A Ortodoxia deve ser mantida e preservada não porque é a "fé de nossos pais", mas porque é a verdadeira fé e, como tal, é universal, abrangente e verdadeiramente católica. Um convertido, por exemplo, abraça a Ortodoxia não porque é a "fé do pai" de alguém, mas porque ele reconhece nela a Igreja de Cristo, a plenitude da fé e da catolicidade. No entanto, é impossível manifestar e comunicar essa plenitude, se a Igreja é simplesmente identificada com um grupo étnico e sua exclusividade natural. Não é tarefa ou propósito da Ortodoxia perpetuar e "preservar" a identidade nacional russa ou grega, mas a função das "expressões" gregas e russas da Ortodoxia é perpetuar os valores "católicos" da Ortodoxia que, de outro modo, seriam perdido. "Nacional" aqui tem valor não em si, mas apenas na medida em que é "católico", isto é, capaz de transmitir e comunicar a verdade viva da Ortodoxia, de assegurar a continuidade orgânica da Igreja. A Ortodoxia, se é para permanecer o veículo e a expressão de uma "subcultura" nacional (e na América todo nacionalismo étnico exclusivo é, por definição, uma subcultura), compartilhará a inevitável desintegração e dissolução deste último. A ortodoxia como a solidariedade natural e afinidade de pessoas vindas da mesma ilha, aldeia, área geográfica ou nação (e temos, de fato, expressões "jurisdicionais" de todas essas categorias) não pode resistir indefinidamente e sobreviver à pressão da lei sociológica que condena essas solidariedades a uma morte mais cedo ou mais tarde. O que é necessário, portanto, não é apenas a unidade e cooperação entre várias "jurisdições" nacionais, mas um retorno à idéia real de unidade como expressão da unidade da Igreja e da catolicidade de sua fé e tradição. Não é uma Igreja "unida", mas a Igreja.

O caráter sem precedentes da situação da Igreja Ortodoxa Americana resulta, assim, em um duplo requisito. A Igreja aqui deve preservar, pelo menos por um período de tempo previsível, sua continuidade orgânica com as culturas nacionais nas quais ela expressou a catolicidade de sua fé e vida. E ela deve, para cumprir essa catolicidade, alcançar sua unidade canônica como verdadeiramente uma única Igreja. Isso é possível?

(V) A Solução: EPISCOPATUS UNUS EST

A resposta a essa questão está na tradição doutrinária e canônica, mas apenas se buscarmos sua profundidade e verdade, e não por "precedentes" insignificantes e legalistas de uma situação que não tem nenhuma.

A solução canônica de que, nestes parágrafos finais, podemos dar apenas um esboço muito geral e preliminar, apresenta-se em três níveis, que, embora sejam níveis ou aspectos da mesma estrutura eclesiástica, devem, no entanto, ser mantidos distintos.

Não pode haver dúvida de que a unidade da Igreja, expressa em sua estrutura canônica, se expressa, antes de tudo, na e pela unidade do Episcopado. Episcopatus unus est, escreveu São Cipriano de Cartago no terceiro século. Isso significa que cada igreja local ou particular está unida a todas as outras igrejas, revela sua identidade ontológica com elas, em seu bispo. Assim como todo bispo recebe a plenitude de seu episcopado da unidade do Episcopado: expressa na pluralidade dos consagradores, essa plenitude inclui, como sua própria essência, sua unidade com todo o Episcopado. Nas páginas precedentes, falamos bastante das distorções implicadas no subordinacionismo canônico. Deve-se enfatizar, contudo, que é a distorção de uma verdade fundamental: a unidade e a interdependência dos bispos como forma de unidade da Igreja. O erro do subordinacionismo canônico é que ele entende a unidade apenas em termos de subordinação (de um bispo a seus "superiores") enquanto que, na eclesiologia ortodoxa, subordinação ou obediência é derivada da unidade dos bispos. Não há poder algum acima do poder episcopal, mas esse poder em si implica a concordância do bispo e a unidade com todo o episcopado, de modo que um bispo separado da unidade dos bispos perde ipso facto seu "poder". [13] Neste sentido, um bispo é obediente e até mesmo subordinado à unidade e unanimidade dos bispos, mas porque ele próprio é um membro vital dessa unidade. Sua subordinação não é a um "superior", mas à própria realidade da unidade e unanimidade da Igreja, da qual o Sínodo dos Bispos é o gracioso órgão: "Os bispos de toda nação devem reconhecer aquele que é o primeiro entre eles e considerá-lo como sua cabeça, e nada fazem de conseqüência sem o seu consentimento, nem faça, nem faça nada sem o consentimento de todos, porque assim haverá unanimidade "(Ap. Cânone 34).

A forma fundamental e a expressão da unidade episcopal é o Sínodo dos bispos e não seria difícil mostrar que todas as formas subseqüentes de estrutura eclesiástica e canônica (províncias, distritos metropolitanos, igrejas autocéfalas) cresceram desta forma fundamental e exigências da tradição canônica. . Os vários modos de agrupamentos de igrejas locais podem ter variado. Assim, a estrutura atual da Ortodoxia como uma família de "igrejas autocéfalas" não é de forma alguma a original. No entanto, o que não pode mudar é o "Sínodo dos bispos" como expressão da unidade da Igreja. É muito significativo, no entanto, que sempre e onde quer que o espírito do subordinacionismo canônico "triunfe, a idéia da unidade do Episcopado e, portanto, do Sínodo dos bispos se torne dormente (sem, é claro, desaparecer completamente). Quando, por exemplo, a Igreja Russa sob Pedro, o Grande recebeu o status de "Departamento de Confissão Ortodoxa", com o resultado, um sistema burocrático de administração através da subordinação, o Episcopado Russo não teve um Sínodo plenário por mais de duzentos anos! E, em geral, uma vez que o "subordinacionismo canônico" tornou-se mais ou menos o sistema de trabalho do governo da Igreja, os próprios bispos não sentiram necessidade dos Sínodos e do "sobornost". Eles estavam satisfeitos com os Sínodos "Patriarcais" ou "Governantes", que, embora mantendo algo da idéia eclesiológica original, eram, de fato, produtos do princípio secular da "administração centralizada", e não da norma eclesiástica da unidade episcopal. Mas é muito importante que entendamos a diferença entre uma "administração central", mesmo que seja chamada "Sínodo", e a verdadeira natureza eclesiológica de um Sínodo episcopal. Uma administração central pode consistir de bispos (como o Santo Sínodo Russo, ou o Sínodo Patriarcal de Constantinopla), mas sua própria função e natureza é suprir a Igreja com um "alto poder" não apenas não derivado da unidade dos bispos, mas significava ser um poder acima deles. Não apenas não é a expressão do poder dos bispos, mas, ao contrário, é entendida como a fonte de seu poder. Mas isso é uma profunda distorção da própria natureza do poder na Igreja, que é o poder dos bispos unidos entre si e unidos a suas respectivas Igrejas como sacerdotes, patronos e mestres. No Sínodo dos Bispos devidamente entendido, todas as Igrejas estão verdadeiramente representadas na pessoa dos seus bispos e, nas primeiras tradições, um bispo sem Igreja, isto é, sem a realidade do seu episcopado, não é membro do Sínodo. O Sínodo dos bispos é o "poder superior" porque fala e age na e pela Igreja e tira da verdadeira Igreja viva a verdade de suas decisões.  

Na tradição canônica, o contexto normal do Sínodo dos Bispos é uma "província", isto é, um grupo territorial geográfico de igrejas, formando um "todo" auto-evidente. Enquanto o Sínodo Ecumênico, universal, permanece um evento "extraordinário", tornado necessário por uma grande crise, os Sínodos provinciais locais devem ser realizados em intervalos regulares (cf. Apoc. Can. 37; Primeiro Niceno, Can. 5; Calcedônia, Can. 37; 19; Antioquia, Can. 20, Segundo Niceno, Can. 6; Cartago, Can. 27; Apost. Can. 37). E, novamente, se a definição precisa de uma "província" mudou muito na história da Igreja e, por sua própria natureza, depende de uma grande variedade de fatores, a idéia implícita nesses cânones, ou seja, a de um grupo de igrejas formando um local igreja, unida pelo território e preocupações comuns, é bastante clara. É essa parte da Igreja Universal, que tem todas as condições necessárias e suficientes para uma existência verdadeiramente católica, na qual todas as igrejas estão em uma interdependência real e compartilham a mesma "situação" histórica.

Tudo isso nos leva à primeira "dimensão" da solução canônica americana: a unidade da Igreja Ortodoxa da América deve ser alcançada e expressa, em primeiro lugar, no nível do Episcopado. Dificilmente pode haver qualquer dúvida de que a América é uma "província" no sentido canônico deste termo, que todas as igrejas ortodoxas aqui, independentemente de sua origem nacional, compartilham da mesma situação empírica, espiritual e cultural, que a vida e o progresso de cada um deles depende da vida e do progresso do todo. Tanto já foi reconhecido pelos nossos bispos quando eles estabeleceram a sua Conferência Permanente. Mas esta Conferência é um órgão puramente consultivo, não tem nenhum status canônico, e útil e eficiente como é, não pode resolver nenhum dos problemas reais porque reflete a divisão da Ortodoxia aqui, tanto quanto sua unidade. Os bispos devem constituir o Sínodo da Igreja Ortodoxa da América e isso antes de qualquer outra "unificação". Pois este Sínodo revelará e manifestará em si mesmo a unidade da Igreja que até agora existe na multidão defeituosa de "jurisdições" mutuamente independentes. E devem e podem fazê-lo simplesmente em virtude de seu episcopado que já os une. Em outras palavras, não algo novo que é exigido deles, mas a manifestação auto-evidente da verdade que Episcopatus Unus Est, da própria essência do Episcopado que não pode pertencer a tochas, mas sempre pertence à Igreja nela indivisibilidade e unidade. Quase se pode visualizar o glorioso e abençoado dia em que uns quarenta bispos ortodoxos da América abrirão seu primeiro Sínodo - em Nova York, Chicago ou Pittsburgh - com o hino "Hoje a graça do Espírito Santo nos reuniu ... "e não mais apareceremos como" representantes "de" jurisdições "e interesses gregos, russos ou de qualquer outra, mas como o próprio ícone, a própria epifania de nossa unidade dentro do Corpo de Cristo; quando cada um deles e todos juntos pensarão e deliberarão apenas em termos do todo, deixando de lado por algum tempo todos os problemas particulares ou nacionais, reais e importantes como possam ser. Naquele dia, "provaremos e veremos" a unidade da Igreja Ortodoxa na América, mesmo que nada mais seja alterado e as várias estruturas eclesiásticas nacionais permaneçam durante algum tempo em operação. Mas, de fato, muito será mudado. A Ortodoxia na América irá adquirir um centro de unidade, de cooperação, um senso de direção, um "termo de referência". Não temos que enumerar aqui todos os problemas que enfrentamos e que, no momento, não podem ser resolvidos porque nenhuma "jurisdição" é forte o suficiente para fazê-lo por si só. O que é ainda mais importante, este centro de unidade hierárquica irá eliminar as inúmeras fricções entre "jurisdições" que resultam em consagrações de novos bispos, e por vezes muito duvidosos. Se o dever do Sínodo, de acordo com a lei canônica, é aprovar todas as consagrações episcopais "e que aqueles que estão ausentes significam sua aquiescência por escrito" 1 Ecum. Cânone 4), a própria existência de um Sínodo trará ordem ao nosso caos jurisdicional, transformando-o em uma estrutura verdadeiramente canônica.


(VI) A solução : ECCLESIA IN EPISCOPO

O primeiro estágio descrito acima é tão evidente que não requer uma elaboração demorada. O próximo nunca foi realmente discutido e, no entanto, se dado algum pensamento, parece ser tão óbvio. Trata-se do segundo nível de unidade que é o da diocese. Neste ponto, alguns dados estatísticos podem ser bastante relevantes: no Estado de Ohio, para tomar apenas um exemplo, existem atualmente 86 paróquias ortodoxas. Eles pertencem a 14 jurisdições diferentes, o que significa que cada grupo é muito pequeno e, por necessidade, extremamente limitado em suas atividades educacionais, beneficentes e quaisquer outras atividades “extra-paroquiais”. Não há bispo ortodoxo em Ohio, nenhum centro de unidade exceto as "comunidades de clérigos" locais. Não é difícil imaginar quais poderiam ser as possibilidades de todas essas paróquias se elas pertencessem a uma estrutura eclesiástica local. Privada disso, cada paróquia vive "em si", sem qualquer visão real do todo. E ainda há dezenas de faculdades em Ohio com uma necessidade urgente de programas ortodoxos, há necessidades educacionais e de caridade óbvias, e existe, acima de tudo, a necessidade de um testemunho ortodoxo comum em um mundo não-ortodoxo. Mas não é exatamente o propósito e a função de uma diocese manter as paróquias juntas, para torná-las partes vivas de um todo maior, de fato, a Igreja? Uma paróquia, deixada a si mesma, nunca pode ser verdadeiramente católica, pois é necessariamente limitada pelas preocupações e interesses de seu povo/rebanho. E é talvez uma das maiores e mais profundas tragédias da ortodoxia americana que as paróquias foram, de fato, deixadas a si mesmas e se tornaram instituições egoístas e egocêntricas. Mas como pode um bispo que vive em Nova York ser um centro vivo de unidade e liderança em Ohio, especialmente se seu poder é limitado a um grupo de paróquias dispersas? Não é de admirar que nosso povo cresça em uma quase completa ignorância da função de um bispo na Igreja e pense nele como um "orador convidado" em uma celebração paroquial. Mas suponha que tenhamos um bispo de Ohio. Suponha que se estabeleça um centro diocesano que orienta e centraliza todas as preocupações comuns da Igreja Ortodoxa em Ohio, que, em vez de ser, como é hoje um princípio de divisão, torna-se um princípio de unidade e vida comum. É mesmo necessário argumentar a favor de tal solução? Não é auto-evidente? Para ter certeza, existem dificuldades. A Igreja é multinacional: a que nacionalidade pertencerá o Bispo? Mas é uma dificuldade absoluta? Não pode ser resolvido se alguma boa vontade, alguma paciência e, acima de tudo, algum desejo de unidade é mostrado? É muito difícil elaborar uma constituição diocesana que incorpore e preveja essas dificuldades? Poderia haver provisões para um conselho multinacional ajudar o bispo, um sistema de rotação de "nacionalidades", um conjunto de bochechas e contrapesos. A experiência dos ortodoxos, que se multiplicaram quase espontaneamente em todo o país, mostra que já existe uma base para essa estrutura comum, espiritual e materialmente, e que precisa apenas ser coroada com sua conseqüência lógica e canônica.


(VII) A solução: a paróquia

Finalmente, o terceiro nível: a paróquia. É aqui que a unidade cultural nacional, que, quer queiramos ou não, ainda constitui uma necessidade vital para a ortodoxia americana, cumpre sua função eclesiástica. É provável que durante muito tempo as paróquias permaneçam predominantemente, se não exclusivamente, coloridas por sua origem nacional. Isso, é claro, não exclui o estabelecimento de paróquias "pan-ortodoxas" onde quer que um grupo nacional seja fraco demais para manter o seu próprio país (em novos subúrbios, por exemplo). Mas, como regra geral, uma paróquia não pode viver de uma ortodoxia "abstrata". Na realidade, é sempre moldado por essa ou aquela tradição litúrgica e piedade, pertence a uma "expressão" definida da Ortodoxia. E é bom que seja assim. Nesse estágio da história da Ortodoxia na América, seria espiritualmente perigoso - e explicamos o porquê - quebrar essa continuidade orgânica da piedade e cultura, da memória e do costume. Há alguns entre nós que sonham com "uniformidade" em tudo, pensando que a uniformidade e a unidade são idênticas. Mas isso é errado e reflete uma compreensão muito formal e não espiritual da unidade. Pode ser a fonte de muitas bênçãos para a crescente Igreja Ortodoxa na América que ela irá lucrar: pelo melhor em cada cultura nacional, irá "apropriar-se" de toda a herança da Igreja Ortodoxa. Pois através de sua unidade com as paróquias de todas as outras origens nacionais dentro da estrutura diocesana, cada paróquia nacional compartilhará suas "riquezas" com as demais e, por sua vez, receberá dos outros seus dons - e esta é realmente a verdadeira catolicidade! A cultura nacional de um grupo deixará de ser um princípio de separação, de exclusividade, de egocentrismo e, portanto, cessará de se deteriorar em um "isolacionismo" psicológico e espiritual. E talvez seja na América que Deus quer que nós curemos o isolamento nacional multi-secular das Igrejas Ortodoxas, uma da outra, e isso não abandonando tudo o que fez a beleza espiritual e o significado das ortodoxias grega, russa, sérvia e todas as outras. "mas dando a cada um deles, finalmente, seu significado universal e católico. É aqui que todos podemos compartilhar e considerar como verdadeiramente nossos legados espirituais dos Padres Gregos, a alegria pascal de São Serafim de Sarov, a piedade calorosa oculta por séculos nas montanhas dos Cárpatos. Então, e somente então, a Ortodoxia estará pronta para um verdadeiro encontro com os Estados Unidos, por sua missão na América...


Em última análise, as exigências de nossa tradição canônica ortodoxa, a solução de nosso problema canônico coincide, por estranho que possa parecer, com a solução mais prática, com bom senso. Mas isso não é estranho. Porque a Tradição não é uma conformidade morta com o passado. Tradição é vida e verdade e a fonte da vida. "Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" - livres para seguir a verdade gloriosa e cumprir neste grande país a missão da Ortodoxia.



1. "O dever de obediência cessa quando o bispo se desvia da norma católica, e o povo tem o direito de acusá-lo e até depô-lo", G. Fiorovsky, "Sobornost - A catolicidade da Igreja", A Igreja de Deus, Londres, 1934, p. 72

2. Cf. John Meyendorff, "Um Bispo em Uma Cidade" (Canon 3, First Ecum. Council) no Seminário St. Vladimir Quarterly, 1961, vol. 5, 1-2, pp. 54-62.

3. Em todos os documentos iniciais, as listas de bispos mostram sua sucessão na mesma "cátedra" e não através de seus consagradores; cf. por exemplo, Eusébio, Eccl. Hist., V, VI, 1-2; São Irineu, Adv. Haer., 111, 3, 3. Sobre o significado da consagração episcopal por vários bispos, cf. meu ensaio, "A idéia do primado na eclesiologia ortodoxa" em O primado de Pedro, Londres, 1963, págs. 40 e segs., e também G. Florovsky, "O sacramento de Pentecostes" (Uma visão russa sobre a sucessão apostólica) em Sobornost Março de 1934, pp. 29-35: "Em condições normais da vida da Igreja, a sucessão apostólica nunca deve ser reduzida a uma enumeração abstrata de sucessivos ordenadores. Nos tempos antigos, a sucessão apostólica usualmente implicava, antes de tudo, uma sucessão a uma cátedra definitiva. em um sobornost local particular.A Sucessão Apostólica não representa uma cadeia auto-suficiente, ou ordem de bispos ".

4. G. Florovsky, op. cit., p. 32

5. "No dia de Pentecostes o Espírito desce não só sobre os Apóstolos, mas também sobre aqueles que estavam presentes com eles; não somente sobre os Doze, mas sobre toda a multidão (compare Discursos de São João Crisóstomo e sua Interpretação de Atos" Isso significa que o Espírito desce em toda a Igreja Primitiva, então presente em Jerusalém, mas embora o Espírito seja um, os dons e ministrações da Igreja são muito variados, de modo que enquanto no sacramento de Pentecostes o Espírito desce em tudo, é somente aos Doze que Ele concede o poder e o grau de sacerdócio prometido a eles por nosso Senhor nos dias de Sua carne.As características distintivas do sacerdócio não se confundem na plena plenitude do Pentecostes. Mas a simultaneidade desse derramamento católico do Espírito em toda a Igreja testemunha o fato de que o sacerdócio foi fundado dentro da igreja. " G. Florovsky, op. cit., p. 31

6. Para uma descrição dessa situação, cf. D. Grigorieff, "O contexto histórico da ortodoxia na América" ​​no Seminário St. Vladimir Quarterly, vol. 5, 1961, 1-2, p. 3ff.

7. Havia 3 Bispos no Sobor de Detroit.

8. Cf. Grigorieff, op. cit., pp. 19 e segs. e A. Bogolepov, Toward an American Orthodox Church, Nova York, 1963, p. 78 e segs.

9. Cf. Bogolepov, op. cit., p. 81 e especialmente Grigorieff, op. cit., pp. 29-32.

10. Cf. A. Schmemann, "Teocracia Bizantina e a Igreja Ortodoxa", St. Vladimir's Quarterly Quarterly, vol. 1, n ° 2, 1953.

11. "Na ordenação de um bispo nenhum bispo separado pode agir por si mesmo como um bispo de uma Igreja local definida e particular ... Ele age como um representante do sobornost de co-bispos, como um membro, e partes de este sobornost ... Além disso, está implícito que esses bispos não são separados e são inseparáveis ​​de seus rebanhos.Todo co-ordenador atua em nome da sobriedade e plenitude católica ... Novamente, estes não são apenas canônicos, ou medidas administrativas, ou disciplinares. Sente-se que há uma profundidade mística neles. Nenhuma realização ou extensão da Sucessão Apostólica é de outro modo possível à parte do sobornost e inquebrantável de toda a Igreja. " G. Florovsky, op. cit., p. 31

* A linha de raciocínio que ele usará no restante desta seção - especialmente seu comentário sobre o "choque de 'lógica canônica'" - é a mesma usada pela Igreja Ortodoxa Russa no Exterior em Sua postura contra o Sergianismo. Essa mentalidade é mais claramente ilustrada nos escritos dos Bispos vivos durante a "Declaração" infame do Metropolita Sérgio de 1927. Ver, por exemplo, as Epístolas de São Cirilo de Kazan.

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