O Ícone: uma Arte Sacra para nosso tempo

QUENOT Michel
tradução de monja Rebeca (Pereira)


Pintor de talento e ateu convencido antes de descobrir, ao acaso, o caminho de Cristo, o imigrante russo em França, Léonide Ouspensky (1987) dedicou sua vida a uma redescoberta do ícone. Ele dizia, com razão que, se a Igreja indivisa do primeiro milênio lutou pelo ícone, é chegado o tempo em que o ícone luta pela Igreja. É bom citar o lugar do ícone na catequese. Necessário, ainda, é conhecê-lo suficientemente e evitar o frequente diferenciamento dos dias de hoje, reduzindo-o à uma simples imagem religiosa, o que ele definitivamente não é.

Até o 7º e último Concílio Ecumênico de Nicéia II, em 787, e em seguida até a vitória definitiva de seus defensores, em 843 – vitória qualificada como “Triunfo da Ortodoxia”, vitória tnato da “justa fé como do justo louvor”, o  ícone deu lugar ao afrontamento violento no seio da Igreja indivisa. Conscientes da aposta primordial, por se tratar de um elemento essencial da fé cristã, monges e fiéis de todas as classes pagaram com seu sangue o testemunho das santas imagens.

O entusiasmo atual pelo ícone não testemunha somente uma sede de sentidos. Suas estruturas e seus símbolos transformaram-se pela publicidade e a arte moderna de forma estranha à Ortodoxia. Alguns vêem nele  a imagem exótica que apreciam para suas formas inabituais e sua audácia cromática. Esta imagem insólita questiona, fascina, incomoda, fazendo-se, por vezes, insistente a ponto de ser gravada no espírito e no coração. Se for descoberta, não pode ser desprezada. Ao lado de ícones fortes – verdadeira teologia pelas formas e cores – quantas imagens usurpam o termo de ícone, imagens essas decadentes que, infelizmente ainda são frequentes nas igrejas e nos países de tradição ortodoxa e que, por isso, demonstram um servilismo tão avassalador.

Mas, o quê é realmente o ícone e por que lhe conceder tal importância? O Antigo Testamento é cheio de passagens que demonstram o desejo de conhecer o Nome de Deus e de contemplar a Sua Face (Ex. 3, 13 e 18). Ao mesmo tempo, se Deus proíbe que se façam  imagens esculpidas e estátuas de metal fundida, pelos povos que tomavam o território (Nm. 33, 52). A determinação dada a Moisés: “Minha Face, não podereis ver” (Ex. 33, 23) explica-se pelo fato de Deus não ter ainda encarnado. Nestas condições, toda forma de imagem e de representação gravada ou esculpida conduz à idolatria, tendo por corolário um culto idólatra, infidelidade suprema para com aquele que escolheu para Si um povo dentre as nações da terra.

A evolução diferenciada da cristandade do Ocidente que deu seguimento ao afastamento progressivo marcado pelo cisma de 1054, tornou a Igreja Ortodoxa guardiã do ícone, até a atualidade. Seu ano litúrgico, que começa em 1º (14) de Setembro, é ritmado pelas Doze Grandes Festas, sendo a primeira delas a Natividade da Mãe de Deus (08/21 Setembro) e a segunda a Apresentação ao Templo (21 Novembro /2 Dezembro). Tal insistência marca a importância desta mulher “mais venerável que os Querubins e incomparavelmente mais gloriosa que os Serafins” - segundo a expressão da liturgia bizantina - futuro Templo vivo, por quem o Verbo vai Se encarnar. A Anunciação (25 Março / 7 Abril) toma uma dimensão cósmica, posto que o Eterno entra no tempo, o Infinito no finito. Sem semente humana, a Virgem Maria concebe pelo Espírito Santo a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Nova sarça ardente e nova Eva, Ela é o marco da nova Aliança, por meio de Quem Deus assume a nossa humanidade.

Pelo Seu Nascimento, Cristo destrói o muro da separação e reduz a nada o culto aos ídolos. Face visível do Deus invisível – sem imagem (eikon, em grego) – Ele torna-Se circunscrito pela Sua inserção no espaço e no tempo. Por ter assim Se manifestado, Ele pode ser representado. Mas não de qualquer maneira! A história da Cristandade é em efeito repleta de tentações que conduziram alguns a negar a divindade de Cristo ou, ao contrário, sua plena humanidade. Ora, segundo um adágio patrístico, “o que não é assumido não pode ser salvo”. Nesse sentido, a vinda ao mundo de Cristo “verdadeiro Deus e verdadeiro homem” implica em representá-lo em Sua divino-humanidade.

Esta exigência faz do iconógrafo um ser a parte que deve estar plenamente inserido no pleroma da Igreja. Sabemos que Alexandre, o Grande, o Augusto imperador, e outros ainda, proibiam a reprodução de sua efígie por pessoa não autorizada. Como, então, deixar de ser cuidadoso na reprodução dos traços do Filho de Deus? Muito bem, o ícone é o fruto de uma elaboração secular, cujo conteúdo e estrutura não poderiam ser deixados ao livre-arbítrio de cada um. Imagem litúrgica da Igreja ortodoxa e da Igreja Indivisa bem para lá dos limites temporais da separação, ele é a imagem verbal dos textos litúrgicos, cuja iconografia deve ser impregnada e servir como veículo dócil ao Espírito. Quer vigiemos ou não, a ignorância das condições nos conduzem à pintura de ícones mais ou menos alheios ao ensinamento da Igreja, seja pela rigidez ou pela sua frieza. Traçar os contornos do Altíssimo é um ministério que nos coloca em contato com o fogo divino, fogo do amor, representado como torrente de fogo no ícone do Julgamento Final, que reaquece o coração dos amigos de Deus, porém faz arder aqueles que se aproximam sem se revestir da alva veste.

Se a Encarnação justifica o ícone de Cristo, que recorda, por sua vez, que “Deus Se faz homem para que o homem se torne deus”, segundo a expressão dos Padres, o ícone de Cristo postula também aquele dos homens e das mulheres divinizadas. No dia de Sua Transfiguração sobre o Monte Tabor, o “Amigo dos homens” - termo frequente nas orações da Igreja Ortodoxa – se revela em Sua verdadeira natureza divino-humana. Até este dia, os Apóstolos Pedro, Tiago e João O viram com seus olhos da carne, de sorte que aquela luz intensa e súbita os lança por terra, como demonstrado no ícone da Festa. Comparando-se com o ícone da festa de Pentecostes, temos que os Apóstolos figuram com uma auréola, eis que receberam o Espírito que lhes santifica, diferentemente dos apóstolos como testemunhas da Transfiguração, quando ainda não haviam recebido o Espírito,  e portanto não suportaram a luz incandescente da divindade, o que explica a sua agitação e ausência de auréola no ícone da Transfiguração. Representá-los com uma auréola, por este motivo, demonstra um desconhecimento profundo deste poderoso simbolismo.

Ao abordarmos o mistério da salvação, faltam geralmente palavras para formular e precisar os eventos relacionados. A razão é crucificada face ao mistério. Quando a língua enrola, as imagens tomam o lugar das palavras por meio do símbolo que religa o mundo visível ao invisível. No advento do Nascimento de Cristo, por exemplo, limitar-se ao acontecimento histórico conduz-nos à figuração de um bebê numa manjedoura, com todo um contexto emocional das “natividades”, à moda italiana. O horizonte permanece limitado ao plano humano e esta criança não se diferencia em nada das outras. O ícone, em contrapartida, não se adere estaticamente à história. Ele se abstrai para melhor assumí-la, em seguida. O ícone do Nascimento libera todo elemento decorativo e emocional para se concentrar no acontecimento de peso cósmico. Tendo em vista o que está contido nos primeiros versículos do Evangelho segundo São João, a Criança está numa cavidade obscura, símbolo das trevas, de onde jorra a Luz do mundo. Outra particularidade: a Criança, embrulhada em faixas, tal como Lázaro no túmulo, não repousa numa manjedoura, mas antes numa espécie de altar-túmulo, prefiguração do sacrifício futuro, pois que Ele é o Cordeiro de Deus, pão do céu que dará Sua carne pela vida do mundo. A presença dos Anjos, estas luzes secundárias, espelhos do Três-vezes-Santo, é justificada pela divindade do Recém-nascido de antes dos séculos, aquele que diz: “Antes que Abraão existisse, Eu sou” (Jo. 8, 58). Estendida sobre um leito púrpura, outrora cor imperial simbolizando Sua dignidade de Mãe de Deus, a Virgem traz uma estrela sobre a parte frontal do véu (o Maphorion) cobrindo sempre Sua cabeça e sobre cada ombro, lembrete de Sua virgindade antes, durante e após Sua maternidade. Como cada um de nós, José se esconde face ao mistério deste nascimento virginal, e este seu “colocar-se à parte” releva uma pedagogia precisa, visando sublinhar que ele não é o genitor da Criança. Criações recentes no mundo latino, os ícones ditos da Sagrada Família fazem o jogo do humanismo, concedendo um semblante de paternidade a José. Este exemplo deveria ser suficiente para salvaguardar toda tentativa de inovação por desconhecimento da Tradição.

Páscoa invernal, o Nascimento de Cristo oferece um paralelo com o ícone da Descida aos Infernos – Anastasis, que  em grego significa re-erguer – imagem pascal da Igreja Ortodoxa. Pela Sua morte na Cruz, de onde Ele abraça toda a humanidade, o Novo Adão Se rebaixa mais do que qualquer homem, pois que são os Seus sofrimentos que Ele traz. Ele desce para buscar o primeiro Adão neste lugar de trevas, que é o inferno, lugar de separação, do qual ele quebranta as portas de ferro e preenche com a luz da Sua divindade. O ícone O demonstra jorrando tal esplendor, tomando Adão e Eva pelas mãos. Através deles, cada homem é potencialmente re-erguido, com a condição de tomar esta mão estendida. Pela Sua morte sobre a Cruz Ele venceu a morte, e o sinal da Cruz torna-se assim um sinal de vitória sobre as trevas, sobre a separação e a morte. Nova Árvore da vida, a Cruz, é a partir de então o “Axe” do mundo e a Escada do Paraíso.

Em nossa civilização pós-cristã, os cristãos costumam fazer frascos de uma embalagem por vezes sem uso. Quantos são motivados apenas por uma visão caricatural da fé cristã, veiculada por imagens e cânticos anêmicos, para não dizer mais? Quantos se dizem ateus sem saber que recusam um falso deus confundido com o verdadeiro Deus manifestado em Cristo, do qual tudo ignoram e, sobretudo, não têm experiência alguma de um encontro pessoal? Tal como a música, a imagem sagrada deve encontrar um estatuto ontológico, tocar as profundezas do ser e veicular uma presença.

A imagem é inseparável da vida espiritual. Refutar, pois, o ícone – imagem ontológica por excelência – é fruto de uma vigorosa Tradição secular ancorada na Liturgia, conduz à criação de imagens, com todos os derivativos inevitáveis de uma imaginação deixadas ao seu próprio critério. O termo “ícones modernos” é um abuso de linguagem, pois sendo imagem litúrgica, implicaria em mudança na própria liturgia, expressão da fé.

Numa visão cristã, a imagem por excelência é o ícone de Cristo. Sua auréola cruciforme traz a inscrição O w v - ”Eu sou Aquele que É”. Os outros ícones lhe são, de certa maneira, derivados, pois seus amigos participam de Suas energias e O absorvem, realização da construção paulina: “vós todos os que fostes batizados em Cristo, vos revestidos de Cristo” (Gal. 3, 27). O homem criado “à imagem de Deus” é, em efeito, a imagem da Face visível do Deus invisível, com vocação para ascender “à Sua semelhança”. A similitude dos rostos observados nos ícones decorre deste fato.

O ícone é a epifania dos rostos, pois aquele que entra plenamente na Luz torna-se luz – é o sentido da auréola dourada – “o todo olho”. Quando os comunistas russos e os muçulmanos extremistas saqueavam em suas esferas de influência os afrescos e os ícones das igrejas e dos monastérios, detinham-se nos olhos, estes olhares insustentáveis colocados sobre eles, interrompendo assim a presença das pessoas que convidam à comunhão. Imagem matricial, o ícone religa, em efeito, as pessoas a Deus, e faz entrar no mundo que há-de-vir, já misticamente manifestado pelos rostos com grandes olhos abertos. Intemporal, ele realiza a alquimia de extrair-nos, por vezes, do tempo, e de aí nos inserir novamente.

Nada no ícone autêntico revela da adversidade. Ele ignora o naturalismo, libera o decorativo, que distrai do essencial e rejeita o emocional, que traduz as paixões. Cada traço veicula uma energia e, por isso, importa que o iconógrafo se deixe atravessar pelo Espírito Santo. Os cabelos, a barba das figuras masculinas, as mãos chamadas “pequeno rosto” e os pés, as vestes, as construções etc., tudo é portador de sentido e obedece a formas precisas. A carne transfigurada perde sua opacidade. Se ficarmos absortos à vista de orelhas com contornos estranhos, este retornar ao interior indica que estes seres de luz não estão mais à escuta do barulho deste mundo, mas sim atentos a vozes interiores. Bocas com finos lábios, desprovidas de todo traço de sensualidade, simbolizando o domínio das paixões: a queda se faz pela oralidade, quer dizer, pela avidez de preferir a criatura ao Criador, de sorte que a restauração em Cristo se faz por um caminhar inverso, por uma re-orientação do desejo. Os traços do rosto e do corpo tornados finos lembram que todo caminhar cristão se faz acompanhar pelo arrependimento e pela ascese, pois morte e ressurreição formam um par inseparável.

O hino pascal: "Cristo ressuscitou dos mortos, pela Sua morte Ele venceu a morte" impregna o ícone. Já presente nos rostos transfigurados, o Reino futuro aponta para o retorno do Rei de glória. Basta mencionar a tensão escatológica provocada pelo ícone hoje, para dar-lhe um sabor de eternidade. Sua perspectiva invertida, que consiste em projetar a cena para aquele que  a contempla, ao invés de desenvolver um ponto de fuga perdendo-se no horizonte remete ao diálogo e à comunhão. Ele responde ao espírito das Bem- aventuranças que inverte os valores deste mundo, pois o “leitmotiv” do Reino futuro não é: bem-aventurados os ricos, os violentos e os hedonistas, mas antes os pobres em espírito, os mansos e os que têm coração puro.

O uso de materiais merece um estudo à parte. Tanto a natureza desarrumada como o ambiente ameaçador traduz a crise que o desenvolvimento de um mundo virtual, às custas do contato com a realidade, só faz exacerbar.  A crise é antes de tudo espiritual. Ora, o ícone clama à beleza da criação e os ícones antigos testemunham o uso de materiais nobres: madeira de tileira da Rússia, pigmentos naturais para as cores, pedras preciosas partidas e polidas, folha de ouro para as auréolas e, geralmente, também para o fundo. Sem levar em conta gastos econômicos particulares, como justificar uma prancha de aglomerado tão distante do valor da madeira, a diferença entre a pedra e o betão, matéria fragmentada e bastarda? O uso da cor acrílica está igualmente em desvantagem com os  pigmentos que veiculam uma energia que a matéria de síntese não tem. Isso sem falarmos na beleza! Através do material dos ícones, é toda a matéria do mundo criado que se põe a transfigurar. A árvore que fornece a prancha do ícone onde se inscreve o rosto de Cristo, de Sua Mãe e dos Santos assemelha-se a toda floresta. Desta forma, olhemos as árvores com outros olhos e será possível torná-la eucaristia, quer dizer, oferta a Deus de Sua criação.

Num mundo onde os deuses pagãos e a energia demoníaca invadem o espaço, o ícone se revela como antídoto para as imagens da morte. Ele dá ocasião para lavar-se os olhos. “A lâmpada do corpo, é o olho. Se, então, o teu olho é são, teu corpo todo será luminoso. Mas se o teu olho está doente, todo o teu corpo será trevas. Se a luz, então, que há em ti são trevas, quão grandes trevas!” (Mt. 6, 22-23). Ocasião, então, de por ordem em nossas imagens e estarmos mais vigilantes face àquelas que nos assaltam! Sem um rigor neste nível, nos tornamos facilmente  jogo das paixões que se desenvolvem a partir de imagens que criam outras novas.

Se a tradição bíblica coloca a gênesis da história humana num face a Face com Deus, o fim dos tempos será marcado, segundo o livro do Apocalipse, por uma luta para impor a imagem da Besta (Ap 13, 13-17) – quer dizer, a imagem maléfica da Grande Meretriz (Ap. 17, 1ss) que será, finalmente, vencida. Então, Cristo Se manifestará aos homens: Face visível do Deus invisível já contemplada no ícone.

Enfim, a descoberta ou redescoberta do ícone implica na sua veneração. Não é a prancha de madeira que é venerada mas antes aquele que por amor pelos homens aceitou tornar-Se matéria e tomar rosto humano. A inscrição “O w v” na auréola de Cristo convida à invocação do Nome que está acima de todo nome, pois “que todo aquele que invocar o Nome do Senhor será salvo”, diz o Apóstolo Pedro (At. 2, 21). Aquele que Se deixa ver no ícone é o mesmo que Se oferece como alimento na Santa Eucaristia.

Em seguimento ao Logos – Palavra encarnada que é o Cristo – os Santos tornaram-se palavra. Eis porque sua imagem verbal, que é o ícone, os torna mais próximos de nós. Através de sua veneração, eles entram em nossa vida e se tornam amigos fiéis que nos dão sustento e nos guiam em nossa caminhada, nos passos do Amigo dos homens.

Pois que o ícone atualiza, hoje, os textos litúrgicos e torna presente a história da salvação. Constitui o vaso por excelência de uma catequese e de uma nova evangelização, com a condição, todavia, de não quebrantar as etapas e tomar o tempo de assimilar a natureza, através seu ancoramento na Tradição.


Num mundo privado de parâmetros, o ícone é uma baliza que deixa entrever uma outra realidade: a Realidade. É necessário fazer silêncio no coração para escutar sua mensagem e estabelecer um diálogo de verdade. Seu contato nos vivifica e nos ajuda a ver no outro o todo Outro.

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